O FIM DO SERVIÇO TELEGRÁFICO DO CORPO EXPEDICIONÁRIO PORTUGUÊS
Introdução
Entre o 9 de Abril e o fim da guerra, em 11 de novembro de 1918, os militares do CEP viveram um tempo de grande depressão e abatimento. A ausência de milhares de camaradas (mortos, prisioneiros, desaparecidos e feridos evacuados para os hospitais de retaguarda) causou a todos os sobreviventes um grande sofrimento, muito difícil de ultrapassar.
O major Ferreira do Amaral, comandante do Batalhão de Infantaria 15, publicou em 1922 o seu livro sobre a guerra “A Mentira da Flandres e… O Medo”, referindo-se a este período com as seguintes palavras:
Em fins de Abril de 1918, os restos de um ano de campanha e os destroços humanos e desorganizados da batalha do Lys foram concentrados em Ambleteuse.
A atmosfera moral que aí se respirava era horrorosa.
A esperança de se acabar de uma vez com aquele exílio pelas terras nevoentas do norte de França tornava aquela massa humana ansiosa por uma solução qualquer.
Os mais fracos ou mais abatidos procuravam fugir dali, fosse como fosse.
Os mais turbulentos reagiam de maneira patente contra os mais elementares preceitos da disciplina.
Quem percorresse os acampamentos das tropas portuguesas tinha a sensação de que aquilo tudo acabaria por estalar com grande estrondo e ainda maior descalabro para o nosso prestígio de exército organizado.
Via-se ali o quanto esse exército não passava de uma guerrilha desterrada.
Os militares portugueses, de uma forma geral, foram organizados em batalhões de trabalhadores, ao serviço das unidades britânicas. Eram aproveitados para cavar trincheiras e outros trabalhos que ninguém gostava de fazer. Esta situação degradante foi sendo superada através da reorganização de alguma pequenas unidades de infantaria que, numa fase já avançada, voltaram à frente, sob o comando de unidades inglesas. Entretanto as unidades de artilharia e a maior parte dos especialistas foram cedidos às unidades respetivas do XI Corpo e também de outras grandes unidades, como o V Exército (comandado por um general australiano) e assim se mantiveram até ao fim.
Serviço Telegráfico, os primeiros impactos
O desmoronamento do CEP em 9 de abril teve de imediato reflexos no desempenho do Serviço Telegráfico do Corpo. Ainda antes da Batalha de La Lys, em virtude das mudanças orgânicas de última hora, se alterou profundamente o papel do Serviço Telegráfico. No seu relato, Soares Branco dá-nos conta do que aconteceu:
Em 6 de Abril deixava o Corpo Português de ter a responsabilidade de defesa de um sector, mas, reforçada com alguns elementos a 2ª CDT, em virtude da intensidade de trabalhos que o sistema de linhas enterradas em execução lhe acarretava, o Serviço Telegráfico do Corpo e da 1ª Divisão mantinha intactos em pessoal e material todos os recursos, desfalcados apenas nos oficiais e sargentos que partidos para a Metrópole em gozo de licença de campanha nunca mais em França tinham dado entrada.
Compreendendo bem que os serviços bons ou maus que as tropas telegrafistas do CEP haviam prestado com responsabilidade da área de um sector haviam terminado, ou pelo menos sofrido uma grande pausa, dirigi ao DD Signals do 1º Exercito a nota nº ST 427 em 5 de Abril agradecendo-lhe a forma sempre amistosa e conciliadora que para com o ST do Corpo Português sempre usara e como resposta foi-me endereçada a seguinte carta que por conter a apreciação que o 1º Exército fez dos nossos esforços passo a transcrever:
“Em nome do Primeiro Exército e de mim mesmo, agradeço a si e aos seus oficiais pelo generoso reconhecimento do trabalho do Serviço de Comunicações do Primeiro Exército durante o ano passado. Os Telegrafistas Portugueses, pela sua cooperação amigável e prontidão para se conformarem aos regulamentos do Serviço Britânico, têm feito muito para resolver as dificuldades que são inseparáveis do problema de prover intercomunicação entre tropas de nacionalidades diferentes. Estou muito grato a si e aos seus oficiais pelo apoio que sempre me proporcionaram.
Sede, Primeiro Exército, 7 de Abril de 1918. (a) H. Moore – Coronel. DD Signals, First Army” (em Inglês no Relatório, tradução de Aniceto Afonso).
Consequências imediatas do 9 de Abril
As consequências do 9 de Abril foram muito profundas, como já dissemos, e o Serviço Telegráfico, como todo o CEP, foi-se confrontando com as repercussões da nova situação.
É este o resumo do capitão Soares Branco:
A batalha de 9 de Abril fizera contudo desaparecer ou inutilizar quase todo o pessoal das Secções de Sinaleiros de 4 Brigadas e 16 Batalhões, desfalcara em cerca de 50% dos efectivos de sinaleiros de 4 Grupos de Artilharia, acarretara várias perdas às tropas de telegrafistas que para a TSF eram quase de dois terços, fizera reduzir à dotação de pouco mais de uma Divisão o material telefónico e telegráfico de todo o Corpo.
Chegadas as unidades à área de Samer ordens sucessivas do comando fizeram enviar novamente para trabalhos de defesa as Brigadas da 1ª Divisão e várias outras unidades entre as quais o 4º GBA.
Excepção feita deste, as restantes tropas enquadradas em unidades Britânicas totalmente divorciadas da acção táctica e técnica dos QG Portugueses do Corpo e das Divisões não mais possuíram senão teoricamente pessoal e material do ST; nem instrução era possível conseguir dar-lhes.
Repetidos esforços feitos nesse sentido pelo CST da 1ª Divisão não lograram grande êxito embora eu tivesse conseguido que o Corpo fornecesse a cada Brigada e Batalhão viaturas próprias para as unidades sinaleiras e que o material técnico fosse de novo completamente distribuído.
A pulverização das nossas unidades e a cedência temporária dos nossos melhores elementos ao Exército Britânico justificada talvez pela hora crítica do momento chegou também a fazer-se sentir nas unidades do ST e eu recebi ordem para considerar de prevenção a Secção Automóvel de Fio – 2ª Secção da CTC.
Sob o comando direto de Soares Branco, como chefe do Serviço Telegráfico do Corpo, restava esta Secção Automóvel de Fio. Mas a premente necessidade de unidades de apoio, na previsível ofensiva aliada da primavera/verão de 1918, levou o comando britânico a requisitar a cedência dessa última unidade do Serviço Telegráfico do Corpo Português. Foi a gota de água que fez compreender que o fim do Serviço estava próximo, tal como acontecia com o comando tático de unidades pelos quartéis-generais do CEP. Nestas circunstâncias, não admira que o capitão Soares Branco, consciente dos factos, escrevesse uma oportuna carta, datada de 17 de abril, ao seu chefe de Estado-Maior, justificando-a pelo facto de “a lealdade e o hábito que sempre contraí de falar claro e acentuar a minha opinião quando em questões do ST eram dadas ordens que eu reputava de perniciosas consequências para o futuro”:
A V. Exª como directamente responsável pelas comunicações na área do Corpo Português julgo do meu dever informar do que significa para nós a cedência do Motor Airline Section 2ª Secção do CTC ao GHQ.
A cedência desta Secção implica o desaparecimento do ST do Corpo que fica reduzido a uma simples Secção de correspondência e aos restos do material de campanha Português que é inadequado ao exigido para um simples estacionamento de Brigada.
Desaparecem com ela os Camions que transportam o material da Companhia e que eram o único meio de transporte que todo o ST possuía, e ficarei inabilitado a, saindo de Samer, montar o mais rudimentar serviço de comunicações.
Tive e tenho a maior responsabilidade na vinda para França dos efectivos das unidades Telegrafistas os quais correspondendo às exigências do serviço cumpriram o seu dever.
São elas como órgãos directamente dependentes do comando a razão da existência destes mesmos.
A ordem que vai ser dada desorganiza e destrói a unidade de que dispunha e que executava as ordens técnicas que segundo as instruções de V. Ex. julgava indispensáveis.
Como Chefe do Serviço que fui cumpria-me informar das consequências e do significado do envio de secções destacadas da Companhia de Telegrafistas do Corpo para o serviço do GHQ e procedendo assim não poderei nunca ser inculpado nem responsável pelas consequências da ordem que a CTC irá receber.
E quando a secção avançou para o GHQ britânico, logo em 25 de abril, Soares Branco não quis deixar de acentuar, em nova carta para o mesmo destinatário, o seguinte:
Que a insistência do Exército Britânico em se socorrer dos nossos guarda-fios para o estabelecimento de linhas inglesas de alguma maneira vem provar que o estipulado na conferência do dia 1 de Novembro de 1917 a que não assisti nem para a qual fui ouvido, se em várias questões pelo seu cumprimento muito comprometeu a sequência das operações por ter que se aceitar um sistema de comunicações que era detestável e não podia ser alterado, ao menos no que diz respeito à instrução de oficiais e praças guarda-fios que devia ser activada por Sua Exª. o General Comandante do CEP parece ter sido satisfatoriamente cumprido visto que esse mesmo pessoal que pela passagem do CEP de Divisão a Corpo teve que ser requisitado da Metrópole na presente ocasião está em condições do Corpo passar ao Serviço do Grande QG Britânico”.
O fim do Serviço Telegráfico
Foi a 10 de maio que os militares portugueses ainda presentes em Samer, como os telegrafistas, receberam ordens para ir estacionar em Ambleteuse, sede da Base Portuguesa. Para Soares Branco era a confirmação do fim de todas as missões que ainda pudessem vir a ser atribuídas ao seu Serviço, como bem expressa no relatório:
Era bem certo que o ST findara e as linhas de comunicação mantinham por intermédio da Missão Britânica a exploração e conservação da estação telegráfica e telefónica de Ambleteuse nenhum serviço sendo entregue ao Corpo Português que apenas conservou talvez ainda por hábito contraído uma central telefónica servindo as repartições dos QG e principais instalações da área.
Um mês depois, do efectivo das 3 companhias era apenas possível refundir uma e conservar um destacamento e a Escola de Sinaleiros como reserva.
A 2ª Divisão sem efectivos fora temporariamente suprimida e a 2 de Julho igual sorte teve também a 2ª CDT que foi empregada em pessoal e material a reconstituir a 1ª CDT que havia recebido ordem para reunir ao seu QG em Dellete.
E, recordando as origens do seu empenho, como responsável do Serviço Telegráfico do CEP, evoca a sua nomeação, a sua participação nas manobras de Tancos, os árduos trabalhos que lhe permitiram manter operacional um Serviço novo e a forma como sempre agiu no cumprimento das suas missões.
Destacamos deste lamento final:
Em homenagem à verdade devo declarar que a primeira vez que, certamente circunstâncias muito atendíveis, fizeram contrariar e desanimar o interesse que me orgulho de ter sempre votado ao meu serviço foi quando vi partir para executar trabalhos sob a direção de estranhos a formação que com seis meses de antecedência eu fizera organizar e instruir em França e me valera resolver sem dependência doutro auxílio o excesso de trabalhos que a entrada do Corpo Português na linha em Novembro de 1917 originou.
É que desde então eu compreendi que não mais poderia manter aquele espírito de Corpo e compreensível emulação que não exclui boas relações de camaradagem que sempre se havia explorado de forma a que todos rivalizassem a, trabalhando entre Portugueses e sob as ordens de Portugueses, mostrar aos sinaleiros Britânicos que com muito menos recursos e com um recrutamento aliás deficientíssimo se era capaz de trabalhar e trabalhar bem.
E depois de recordar algumas fases mais intensas dos trabalhos em que esteve envolvido, Soares Branco termina da seguinte forma:
Ao terminar seja-me lícito que sem esquecer aqueles que pelo seu zelo e interesse pelo serviço em lugar competente eu deixo enumerados para apreciação do comando, eu me refira com palavras de agradecimento e saudade àqueles telegrafistas na sua grande maioria da Companhia de Telegrafistas de Praça que vindos da Metrópole para trabalhar nos Batalhões e Brigadas foram sem dúvida a base do regular funcionamento do serviço alcançado, tantos dos quais foram perdidos para a Pátria e para os seus na manhã do dia 9 de Abril e tantos outros vieram encontrar em terras de França a ruína certa de uma existência.
Sem eles nada teria sido possível no ST. Heróis obscuros que a maior parte das vezes o dever sacrifica, sem que a modéstia e o nenhum brilho das suas funções consiga sequer recolher-lhe os seus nomes.
E assina assim, com o seu próprio punho:
França, Julho 1918
Carlos de Barros Soares Branco
Cap. Eng. CST do CEP
Conclusão
Quando visitamos, passados cem anos, esta abundante documentação que herdámos da presença das tropas portuguesas em França, constituindo um Corpo Expedicionário Português, a coberto de vários acordos entre os Governos Português e Britânico, somos confrontados com as dúvidas que assaltam tanto os curiosos destes estudos, como os historiadores que se debruçam com mais diligência sobre os tempos passados. De forma mais ou menos explícita, as dúvidas que hoje temos sobre a participação de uma força portuguesa na frente europeia da Grande Guerra, são as mesmas que muitos dos participantes deixaram transparecer. O longo relatório do capitão Soares Branco, chefe do Serviço Telegráfico do Corpo, é disso um exemplo marcante. Apesar de através dele, o autor querer transmitir, em especial, os aspetos operacionais e técnicos do seu Serviço, a verdade é que, de forma mais ou menos subtil, ele não deixa de mencionar, várias vezes, dúvidas sobre a necessidade da presença portuguesa em França, sobre a forma de que essa presença se revestiu e especialmente sobre as relações estabelecidas, na frente, com os comandos britânicos. São críticas e apreciações subtis, mas que nos alertam, tal como tantos outros documentos, para a prudência com que devemos analisar a presença das tropas portuguesas nessa destruidora guerra europeia.
Que possamos aproveitar, como exemplo, a memória dos acontecimentos que rodearam o sacrifício exigido aos jovens portugueses de então, é o menos que podemos hoje exigir.
Toda esta matéria me impressionou muito e veio confirmar a situação dramática, mesmo patética, de Portugal na época. E no entanto ainda tínhamos o tal império, o império imaginário duma elite decadente.