Post do Cor Aniceto Afonso, recebido por msg:

A BATALHA DE LA LYS  (III) (5ª BI e 3ª BI)

Introdução

Paul von Hindenburg, comandante em chefe dos exércitos alemães, descreve assim, nas suas memórias, a ofensiva do Lys em 9 de abril:

No Inverno, a área do vale do rio Lys ficava inundada numa larga extensão, e na primavera, não passava muitas vezes de um pântano, por semanas a fio – um verdadeiro horror para as tropas que estavam nas trincheiras nesta altura.

Era perfeitamente inaceitável pensar na realização de um ataque antes do vale do Lys se tornar transponível. Em circunstâncias normais de clima, só poderíamos esperar que o solo ficasse suficientemente seco, em meados de abril.

Mas pensei que não seria possível esperar até essa altura para começar o combate decisivo no Ocidente. Tivemos de contar com as perspetivas de intervenção americana.

Não obstante estas objeções ao ataque, tínhamos o plano detalhado, pelo menos teoricamente.

Esta hipótese estava assente nos finais de março. Logo que vimos que o nosso ataque a Ocidente era inevitável, decidimos iniciar as nossas operações na frente do Lys.

Uma pergunta dirigida ao Grupo de Exércitos do Príncipe Herdeiro Rupprecht, trouxe a resposta de que, graças à primavera seca, o ataque em todo o vale do Lys se tornara viável.

Em 9 de abril, aniversário da grande crise em Arras, as nossas tropas passaram das suas lamacentas trincheiras na frente do Lys para a frente de Armentières a La Bassée.

Claro que não foram transferidas por grandes movimentos, mas principalmente por pequenas destacamentos e colunas lentas, através do pântano.

Sob a proteção de nossa artilharia e morteiros de trincheira, eles conseguiram alcançar os seus postos rapidamente, apesar de todos os obstáculos naturais e artificiais, embora aparentemente nem os ingleses nem os portugueses acreditassem que isso fosse possível.

O Tank inglês Mk I (macho) “Lusitania”, que participou na batalha de Arras, um ano antes.

Esta memória deve ser confrontada com alguns excertos da memória de Douglas Haig, comandante em chefe dos exércitos aliados:

A preparação do inimigo para uma ofensiva neste sector central tinha sido concluída há algum tempo. O admirável e extenso sistema ferroviário tornou possível, com grande rapidez, a concentração de tropas necessárias para um ataque. As minhas forças neste sector não poderiam ser grandemente reduzidas.

Em consequência destes vários fatores, a maior parte das divisões na linha de frente, e em particular a 40ª, 34ª, 25ª, 19ª e 9ª Divisões, as quais em 9 de abril estavam na frente, entre o sector Português e o Canal Ypres-Comines, já tinham tomado parte na batalha do sul. Deve considerar-se que, antes da batalha do norte se iniciar, quarenta e seis das minhas cinquenta e oito divisões, tinham estado empenhadas no sul.

No final de março, no entanto, a parte norte da frente secou rapidamente sob a influência de uma primavera muito quente, ficando em condições de sofrer um ataque mais cedo do que seria de esperar. Preparativos para apoiar a Divisão Portuguesa, que tinha estado continuamente em linha por um longo período e precisava descansar, foram feitos durante a primeira semana de abril, e deveriam ter sido concluídos até à manhã do dia 10 de abril. Entretanto, outras divisões, que tinham sido empenhadas na luta no Somme e que tinham sido retiradas para descansar e se reorganizarem, foram transferidas para a frente do Lys.

A persistência do bom tempo fora da estação e a secagem rápida do vale do Lys permitiu ao inimigo antecipar o ataque à 2ª Divisão Portuguesa.

Na noite de 9 de abril, um invulgar bombardeamento pesado e prolongado, também com gás, foi iniciado ao longo de praticamente toda a frente de Armantieres a Lens, cerca das 4,0 horas, do dia 9 de abril.

O ataque do inimigo, em primeira instância foi lançado sobre a porção norte da frente do general Sir Horne, do Primeiro Exército.

Cerca das 07h00 horas, no dia 9 de abril, na espessa neblina que tornou a observação impossível, o inimigo parece ter atacado pela esquerda, a brigada da esquerda da 2 ª Divisão Portuguesa em força e de ter quebrado as suas trincheiras. Poucos minutos depois, a área de ataque alargou-se para sul e para norte.
A comunicação com as divisões em linha foi difícil, mas durante a manhã, a situação ficou esclarecida, tornando-se evidente que um sério ataque estava em andamento na frente da 55ª Divisão, da 2ª Divisão Portuguesa e da 40ª Divisão, desde o canal de La Bassé até ao Bosque Grenier.

Para o norte das posições da 55ª Divisão, o ímpeto do ataque alemão submergiu as tropas portuguesas, e a progressão do inimigo foi tão rápido que as movimentações para cobrir as defesas da retaguarda deste sector com as tropas britânicas apenas puderam ser concluídas no limite do tempo.

A ação destas tropas, e mesmo de todas as divisões que se empenharam nos combates do Vale do Lys, foi notável, porque, como já foi salientado, praticamente a totalidade delas tinha vindo do campo de batalha do Somme, onde tinham sofrido gravemente e sido submetidas a uma grande tensão. Todas estas divisões, sem um descanso adequado e preenchido com jovens reforços, foram novamente atiradas apressadamente para a luta e, apesar das grandes desvantagens, conseguiram segurar o avanço de forças muito superiores”.

Periscópio de trincheira

Nem tudo fica em definitivo esclarecido, mas as explicações que ambos os lados nos transmitiram, ao mais alto nível, respondem a muitas das dúvidas que especialmente acompanharam os participantes deste trágico dia 9 de abril, na região do rio Lys.

5ª Brigada de Infantaria

A 5ª Brigada de Infantaria ocupava o flanco direito do sector português, o subsector de Ferme du Bois, estabelecendo ligação com a 165ª Brigada da 55ª Divisão Britânica. Tinha na frente, à esquerda, o Batalhão de Infantaria 17, e à direita, o Batalhão de Infantaria 10. Em apoio estava o Batalhão de Infantaria 4 e em reserva o Batalhão de Infantaria 13. A 5ª BI era comandada pelo coronel Diocleciano Martins, e ocupou o sector nos dias 6 e 7 de abril, referindo o seu comandante no respetivo relatório as condições em que os seus batalhões se encontravam nas vésperas desse movimento. As suas palavras resumem a situação:

Foi neste estado de depressão física e moral que deixei esboçada, que o comando da Divisão não desconhecia pelo meu relatório de 4 de abril exigido pelo mesmo comando, que a Brigada de Infantaria entrou outra vez no serviço de trincheiras com os batalhões reduzidos a pouco mais de metade do seu efetivo completo em espingardas úteis e maior área a defender.

E mais adiante:

O comando do XI Corpo Inglês, a que desde esta ocasião se achava subordinada a 2ª Divisão, não ignorava os preparativos do inimigo para uma ação ofensiva, tanto que, após os cumprimentos de S.Exª., o comandante daquele corpo pelos comandantes das brigadas e batalhões, no dia 7 de abril, seguiu-se uma conferência em que pelo mesmo senhor foi dito que era possível um ataque à frente portuguesa, mas que não haveria a recear um ataque a fundo, pois que o inimigo não possuía tropas à retaguarda para o apoiar; que em se lhe oferecendo resistência na linha B com as tropas dos sectores, nada mais seria preciso para fazer malograr qualquer ataque.

Como vemos, ou eram incompletas as informações do comando inglês ou não foram devidamente comunicadas aos comandos portugueses.

Batalhão de Infantaria 10

O BI 10, como dissemos, guarnecia o subsector direito da 5ª BI. O major António José Teixeira, que fez o relatório respetivo como comandante do Batalhão, em finais de 1919, depois de regressar dos campos de prisioneiros da Alemanha, descreve a batalha com bastante pormenor.

Todos nos erguemos, como impelidos por uma força elétrica e no meio do maior sobressalto, cerca das 04h15 da madrugada, despertados por um bombardeamento tremendo e ensurdecedor.

O comandante do Batalhão, Guilherme Araújo, e 2º comandante, Ramires, correm ao telefone e procuram inteirar-se do que ocorre…

O nevoeiro sinistro da natureza, a que em breve se junta outro produzido por milhares de bocas de fogo, e talvez o dos aparelhos que para esse fim os alemães possuíam, barravam inteiramente o campo de visão. (…)

Os ecos das granadas e dos morteiros sucedem-se ininterruptamente (…) O ribombar do canhão tem todas as modelações (…)

As trincheiras tremem, e com elas toda a terra; oscilam e esboroam-se como se fossem brinquedos de criança… (…)

Assim se reconhece estar a ser batido todo o sector português, em profundidade e largura, a começar pelo nosso “Ferme du Bois”, La Couture, e por ali acima… (…)

É debaixo da pressão dum tal concerto que o infante português, de olhos esbugalhados, fixa a “terra-de-ninguém” até às 7 horas, sem poder encontrar uma explicação dos factos que se estão passando à sua volta (…)

O comandante do Batalhão mantinha-se ainda em ligação com as companhias, indagando o que havia na frente e fazendo assim a exploração da rede telefónica. (…) As respostas são sempre as mesmas… o inimigo não aparece, mas o bombardeamento agora é mais intenso nas proximidades do comando do Batalhão (…)

São quase 6 horas!

A exploração das linhas começa a dizer que estão cortadas…

Agora o comandante de Batalhão tenta ligar-se por meio de estafetas (…) essas estafetas iam, mas não regressavam!

As comunicações telefónicas com a artilharia estavam cortadas. Lançam-se mais foguetões… (…)

O inimigo bate todas as comunicações.

O nevoeiro é cada vez mais denso, mais escuro… (…)

Lançam-se agora, que o dia vem rompendo, os pombos correio existentes junto do comando, mas as pobres avezitas, sob um céu de metralha e sufocador, estarrecidas, não querem voar, e alguma que parte fica sem vida certamente, pois o resultado da comunicação é nulo…

O oficial de ligação da artilharia (…) lança ainda todos os foguetes que existem no comando. Mas parece que estes sinais serviram apenas para fazer recrudescer o bombardeamento em torno do comando do Batalhão (…)

A conselho do 2º comandante e atendendo a que os telefones já não funcionavam, o comandante deixou o abrigo dos telefonistas e dirigiu-se para o do oficial sinaleiro, em melhores condições de segurança (…)

Continuou-se daí a mandar ordenanças para a frente. Pelas 9 horas e alguns minutos, voltou uma das últimas enviadas dizendo ser impossível chegar às linhas (…)

A tempestade aumenta. Os entrincheiramentos continuam a esboroar-se. A terra treme. Há muita gente ferida que se mantém nas suas posições… A artilharia, agora, cerca das 9h30, bombardeia dum modo pavoroso os abrigos destinados ao comando e pessoal do E.M. do Batalhão!

A nova de que o inimigo devia estar na 2ª linha a todos pôs em sobressalto. (…)

Por isso (o comandante do Batalhão) resolve, agora, cerca das 9h40, abandonar o local do comando e dirigir-se a informar o comandante da Brigada da situação (…)

Todos se preparavam para coadjuvar as forças contra-atacantes… Mas, triste ilusão!… o inimigo havia feito o envolvimento!

Uma patrulha, precedida de 30 homens comandados por um oficial, gritava-lhes: Nach aubers! Nach aubers!… Eram prisioneiros!…

De uma forma geral, estas foram as horas que todas as unidades da frente viveram, umas mais cedo e outras mais tarde, de acordo com a hora de ataque da infantaria alemã. O bombardeamento alemão fez-se por fases, sendo primeiro atingida a retaguarda das forças aliadas e rolando a frente de fogo em direção às primeiras linhas. É isso que justifica a sobrevivência das ligações telefónicas nas primeiras horas entre as companhias e os respetivos batalhões, quando já estes não conseguiam ligar-se às suas Brigadas ou estas à 2ª Divisão.

As ligações da 5ª Brigada de Infantaria

O relatório do capitão Mascarenhas Inglês reflete a situação geral que nos é transmitida por estes testemunhos. Apesar dos pormenores técnicos que predominam no seu relato, sente-se igualmente o ambiente geral e os efeitos dos bombardeamentos sobre as linhas de comunicação, causadoras da ausência de informações dos comandantes dos vários níveis, em especial das Brigadas e da Divisão.

Em relação à 5ª Brigada, é o seguinte o ponto de situação feito por Mascarenhas Inglês:

O QG da Brigada que ocupava o sector de Ferme du Bois, transferira-se poucos dias antes, salvo lapso na tarde de 6, por determinação su­perior para o antigo Posto de Comando em Cense du Raux. No acampamento da Rue du Bois (…) ficara contudo um escalão recuado junto ao qual funcionava na manhã de 9 o telégrafo da Brigada e uma central telefónica que assegurava ao Comando da Brigada as comunicações para a Divisão e Brigadas laterais as quais ainda não fora possível estabelecer diretamente para Cense du Raux.

Com o QG da Divisão estava a Brigada ligada por duas linhas tele­fónicas de traçado diferente numa das quais se sobrepunha o telégrafo. (…) A Brigada dispunha das devidas ligações telefónicas com os QG das Brigadas laterais, com a artilharia e com os seus Batalhões (…)

A conservação de uma central telefónica à retaguarda do posto de comando da Brigada e a uma distância que pouco menos era de dois quilómetros tornava a meu ver assaz defeituoso o dispositivo das comunicações telefónicas do sector. (…)

Junto a Cense du Raux havia uma estação de TSF que comunicava com a da Divisão e com a do QG em Huit Maisons. Quanto a aparelhos de TPS ainda não existiam nenhuns no antigo sector de Ferme du Bois porque não tendo sido recebidos em tempo oportuno e quantidade suficiente os respetivos acumuladores e estando para deixar de ficar à nossa responsabilidade esse sector, julgou-se mais conveniente montar nos outros sectores os que se podiam pôr a funcionar. (…)

Mascarenhas Inglês refere depois cada um dos Batalhões, sem que a situação geral se apresente diferente do panorama da Brigada. No final da sua descrição, a propósito do BI 10, diz o seguinte:

Foi então que o comando do Batalhão começou a ser alvejado cortando-se primeiramente as linhas para a companhia do centro, e perto das 9 horas, a da companhia da esquerda e Batalhão à esquerda. Pouco depois a estação foi atingida por uma granada; os aparelhos deviam ter ficado destruídos sob os destroços do abrigo. (…)

Durante a manhã tinham sido mandados dois estafetas em bicicleta à Brigada e vários a pé para as companhias tendo sido empregado neste serviço todo o pessoal da Secção de Sinaleiros. Não me consta que quaisquer dessas estafetas tenham voltado ao comando do Batalhão.

Foram largados dois pombos-correios.

Transmitiu-se com uma lâmpada Lucas, mas é provável que os seus sinais não fossem captados devido ao nevoeiro.

Pouco depois de ser atingida a estação, o sargento da Secção de Sinaleiros retirou com o comandante e ajudante do Batalhão. Ouviam-se já tiros de pistola e espingarda muito próximos constando que os alemães estavam no Posto de Socorros.

3ª Brigada de Infantaria

A 3ª BI estava em reserva, tendo os seus Batalhões dispersos na linha do Corpo, prontos a ocupar a chamada Linha das Aldeias, em caso de ataque. Embora não chegando a avançar para esta linha, acabaram por fazer parte da resistência posterior, perdendo 17 oficiais, 18 sargentos e 218 cabos e soldados. A 3ª BI incorporava os Batalhões de Infantaria 9, 12, 14 e 15, e era comandada pelo coronel João Júlio dos Reis e Silva.

in Flandres, Cap Costa Dias

A sua ação é assim recordada pelo capitão Mascarenhas Inglês:

A 3ª Brigada saíra do sector de Neuve Chapelle na noite de 6 para 7 e não era possível ter tido materialmente tempo para executar este serviço (defesa da Linha das Aldeias).

O que existia na manhã do dia 9 era pois o que fora previsto para a hipótese de ocupação de Vilage Line por duas Brigadas, uma de cada Divisão.(…)

Na manhã do dia 9 o QG da 3ª BI estava ainda em La Gorge quando a 2ª Divisão recebeu ordem às 5h30 para mandar ocupar a linha intermédia. (…)

Pela sequência das operações realizadas pelas unidades desta Brigada eu creio que não se teria sentido muito a falta de ligações.

Pela descrição acima feita reconhece-se que as ordens dadas não estavam naturalmente de acordo com as ligações, o que fatalmente sucederia dada a mudança dos efetivos de ocupação e de número dos QG de Brigadas correspondentes.

Pôde ainda averiguar-se pelo sargento da Secção de Sinaleiros de Infantaria 13 o qual estava em Diez Bailleuel com alguns sinaleiros nos postos de Pont du Hem e Charter House aguardando fazer a respetiva entrega aos sinaleiros da 3ª Brigada, que com o bombardeamento de Diez Bailleul as linhas se cortaram sendo impossível repará-las e que nenhuns sinais óticos podendo ser vistos dos postos da frente.

Este sargento se retirou dali, trazendo todo o material, cerca das treze horas, depois de ver retirar uma força inglesa.

Conclusão

Ao situarmo-nos nesta terrível manhã de 9 de abril de 1918, podemos compreender o sacrifício que foi pedido aos soldados da 2ª Divisão Portuguesa. A nossa análise não pode separar os soldados portugueses dos seus camaradas ingleses e de outras nacionalidades, todos integrando as forças aliadas. A Batalha de La Lys fez parte duma ofensiva alemã da primavera de 1918, com a qual o comando alemão pretendia romper as linhas aliadas. Não o conseguiu, pelo que a derrota nos combates do vale do Lys faz parte de um conjunto mais vasto de operações militares que no final conseguiram suster a ofensiva alemã. Ver a Batalha de outra forma é deturpar a análise serena dos acontecimentos. É certo que a 2ª Divisão não estava preparada para combater, pelas circunstâncias que temos descrito e analisado, muitas vezes com recurso a documentos originais elaborados pelos próprios protagonistas, mas nem por isso deixaram de constituir um obstáculo, pese a sua debilidade, à progressão das forças alemãs. Eles são credores da nossa homenagem e merecedores da nossa sentida memória, quando se perfazem cem anos sobre o dia fatal para o Corpo Expedicionário Português.

1 comentário em “As TRANSMISSÕES na GRANDE GUERRA – Relatório de Soares Branco (17)

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