Post do Cor Aniceto Afonso, recebido por msg:

A BATALHA DE LA LYS (I)

Introdução

No dia 9 de abril mantinha-se na frente a 2ª Divisão Portuguesa, com todas as dificuldades que Soares Branco nos tem vindo a relatar. O responsável maior pelas comunicações era por isso o chefe do Serviço Telegráfico da 2ª Divisão, capitão Heitor Mascarenhas Inglês. Com toda a lógica, Soares Branco decidiu dar a palavra ao seu camarada de serviço, transcrevendo por inteiro o seu relatório dos acontecimentos.

O relatório do capitão Mascarenhas Inglês é sobretudo um relatório técnico e descritivo, que procura explicar as diversas situações e respetivas soluções, mas que nos transmite um panorama completo de toda a frente, percorrendo todas as unidades de Infantaria e Artilharia (Divisão, Brigadas, Batalhões e Grupos de Baterias), com detalhada explicação das ligações, trabalhos executados e interrompidos, assim como o destino do pessoal, material e equipamentos. Ressalta dos diversos relatos a importância que no dia 9 de abril tiveram as ligações por estafetas em que todo o pessoal disponível foi utilizado, a pé, a cavalo, de bicicleta ou motocicleta. Fica também a ideia do corte quase imediato, a seguir aos primeiros bombardeamentos alemães, das comunicações por cabo e da ineficácia de qualquer outro meio de comunicação, como a TSF ou os pombos-correio.

Apesar da compreensível preocupação técnica do autor, o relatório é um testemunho muito interessante para a compreensão do drama vivido naquelas horas decisivas na frente portuguesa no dia 9 de abril de 1918, em que as tropas portuguesas foram completamente surpreendidas por um grande ataque das tropas alemãs, enquadrado na sua grande ofensiva de primavera, com o objetivo de romper a frente aliada.

QG’s: CEP – St Venant; 2ª Div – Lestrem; 2ªCDT – Lestrem; 5ª BI (setor de Ferme du Bois) – Cense du Raux, com escalão recuado na Rue du Bois; 6ª BI (setor de Neuve Chapelle) – Huit Maisons; 4ª BI (setor de Fauquissart) – Lavantie; 3ª BI (reserva, linha C) – La Gorgue; Pombal fixo – LaCouture

As comunicações no QG da Divisão

O que se passou com o capitão Mascarenhas Inglês é um exemplo do que aconteceu, de uma forma geral, com o pessoal do Estado-maior da 2ª Divisão. A relativa tranquilidade de mais um dia de rotina, em que a Divisão se preparava para ser substituída na frente, foi brutalmente interrompida por um intenso bombardeamento alemão, que desde logo pareceu ter dimensões pouco usuais. Vejamos algumas passagens do relatório:

As estações centrais do QG em Lestrem possuíam todas as ligações que é de regra haver numa Divisão. (…)

As linhas, ao sair da Divisão, eram todas aéreas (…)

As duas linhas para cada Brigada e Cockshy tinham traçados diferentes e, a partir de certo ponto, seguiam por cabo armado enterrado ou em drenos.

Em Lestrem tinham sido preparadas pela 1ª Divisão duas estações de reserva, uma para as linhas do comando da Divisão e outra para as da Artilharia, para o que se tinham feito derivações dos traçados aéreos em cabo armado colocado em drenos. Estes drenos passavam num dado ponto a menos de 200 metros do edifício do QG

Todas as linhas estavam em bom estado de funcionamento na noite de 8/9. Pouco depois das 4 horas começou a ouvir-se um forte bombardeamento notando-se que algumas granadas rebentavam nas proximidades do QG. Parecendo-me que se devia tratar de uma ação importante, levantei-me para me ir informar do que ocorria e dirigir o funcionamento do serviço.

Às 4 horas e 20 minutos as comunicações para as Brigadas da esquerda e direita já estavam interrompidas, conservando-se apenas por mais alguns minutos as da Brigada do centro.

Mandei imediatamente pôr de prevenção todo o pessoal telefonista e de guarda-fios.

Entretanto recebia ordem, que fiz executar, para guarnecer a estação de reserva. Feitas rapidamente as ligações ao indicador, constatou-se que nenhuma das linhas da frente funcionava. Uma das avarias foi logo descoberta; tratava-se de um corte, produzido em todos os cabos armados que entravam na estação, por granada que incidira sobre o dreno entre e edifício do QG e a estação de reserva (…)

Entretanto ordenava-se que outros grupos de guarda-fios saíssem para tentar reparar as linhas. (…)

Os primeiros, tendo chegado a Fosse, comunicaram por uma das linhas que a partir desse ponto até ao Poste quadrado de Vieille Chapelle as linhas estavam completamente por terra. (…)

Não chegou a haver tempo para concluir este trabalho que, devido à intensidade do bombardeamento junto a Fosse, só muito morosamente podia ser executado; entretanto recebia-se ordem para retirar. (…)

Pela Secção de Cabo do tenente Williams foram montadas linhas até Fosse. Julgo que por uma delas que teria sida ligada a um par de linhas enterradas, chegou a estar estabelecida comunicação com uma das Brigadas mas apenas por poucos momentos. (…)

A fim de ser utilizada em qualquer construção que as circunstâncias tornassem oportuna, mandei apresentar no QG uma esquadra de cabo. Depois de dada esta ordem constatei que o bombardeamento das estradas de Lestrem para a frente tornava efémera a duração de qualquer linha que ao longo delas se estabelecesse. (…)

Cerca das 13 horas e 30 minutos, em harmonia com instruções recebidas ordenei que se desmontassem as estações do QG2, a de reserva e a da artilharia, e que se recolhessem todos os telefones que fossem encontrados nas Repartições, pondo-se todo o material em condições de ser transportado.

Pelas 15 horas retirei para Calonne onde pedi instruções acerca da montagem de quaisquer comunicações. Apenas me foi apresentada a necessidade de uma ligação da Secretaria do Town Major para uma casa onde estava o Comando da Artilharia, mandando para isso construir em cabo D3 uma linha com uns 200 metros de extensão.

As comunicações por estafetas

A descrição que o capitão Mascarenhas Inglês faz deste serviço permite-nos perceber o grande drama e os pequenos dramas daquele dia 9 de abril. Falhadas as comunicações telegráficas e telefónicas, só parecia viável a troca de correspondência por estafetas, usando qualquer meio de transporte disponível. Mas a situação no campo de batalha raramente permitiu que as missões fossem levadas a bom termo, apesar da urgência e da importância dos pedidos de apoio das unidades ou da transmissão de ordens dos comandos. Pouco foi possível executar a tempo, mesmo à custa dos esforços, do desembaraço ou mesmo da valentia dos estafetas. Algumas mensagens concretas chegaram aos destinatários, mas poucas em condições de poderem ser respondidas com eficácia.

São estas algumas das passagens do relatório:

Na manhã de 9 a Divisão dispunha de nove motociclistas, 11 ciclistas e dois estafetas a cavalo em condições de prestar serviço. Dois dos motociclistas estavam apresentados nos QG das 4ª e 6ª Brigadas de Infantaria. Um outro estava exclusivamente encarregado do serviço do Corpo de Artilharia. (…)

Da 4ª Brigada as primeiras notas expedidas foram entregues ao motociclista Américo que lá estava em serviço. Eram dirigidas essas notas ao Chefe do Estado-Maior, ao 6º Grupo de Baterias de Artilharia e ao 2º Grupo de Baterias de Artilharia. O motociclista saiu cerca das 8h30, foi aos Grupos e passando por La Gorgue veio a Lestrem. Regressou a Laventie com uma nota urgente para a Brigada, cujo Comando já se encontrava então na cave da Missão Britânica. A Brigada, tendo necessidade de enviar outra nota para a Divisão, provavelmente durante a ausência do motociclista, entregou-a a uma estafeta a cavalo. O cavalo foi morto na ocasião em que a estafeta o aparelhava, ficando o homem levemente ferido por um estilhaço pelo que foi receber curativo ao Posto de Socorros seguindo a pé para a Divisão, onde teria chegado pelas 11h30 entregando a nota a um capitão do estado-maior.

Entretanto, da Divisão tinha sido mandado a Laventie o motociclista Gonçalves. Antes deste aí chegar, cerca das 11 horas, o Américo foi mandado levar correspondência ao 6º Grupo e neste recebeu uma nota para o Comando de Artilharia para onde seguiu. Em Lestrem apresentou-se-me com a moto avariada. Mandei entregar-lhe uma outra e voltou para a frente com três notas para a 3ª BI e uma para a 4ª. Em La Gorgue já não encontrou ninguém no QG da Brigada. Continuou para a frente e ao chegar à estrada de La Bassee encontrou sentinelas inglesas que o não deixaram passar, recolhendo então a Lestrem onde se apresentou. Quanto ao Gonçalves sei que tendo chegado a Laventie perdeu a sua moto que tinha deixado na rua à porta da estação e foi atingida por uma granada ficando completamente despedaçada. Esta praça não mais voltou a aparecer. (…)

Da Divisão foram mandados a Huit Maisons dois motociclistas. O primeiro saiu muito cedo não tendo chegado ao seu destino porque lhe caiu muito próximo uma granada ficando a estrada cortada e por ter sido atacado de gases tendo de abandonar a motocicleta. O segundo saiu pelas 7 horas e encontrando em Fosse um ciclista que vinha da Brigada à Divisão com um urgente pedindo carros para transporte de feridos, trouxe-o na moto até Lestrem, levando-o depois a Fosse donde o ciclista seguiu para a Brigada.

Das duas comunicações recebidas da 5ª BI, de nenhuma posso informar qual o meio de transmissão. Da Divisão foram lá mandados dois motociclistas e um ciclista. Saiu primeiramente um motociclista que não se sabe o que conseguiu; não voltou à Companhia. Depois disso foi mandado um ciclista e cerca das 7 horas, o motociclista Cruz. (…)

Ao chegar lá, o Cruz achou destruído e abandonado esse posto, e na estrada encontrou o ciclista da Divisão acima referido atacado de gás. Conseguiu ser informado perguntando a outras praças do local onde estava o Comando e atravessando a intensa barragem de granadas de gás, alcançou esse local entregando a correspondência. No regresso esta praça atrelou a bicicleta à sua moto, trazendo assim para Lestrem o ciclista.

Além destas transmissões muitas outras se fizeram de correspondência ordinária e urgente (…)

A ineficácia da TSF

A TSF poderia ter sido uma alternativa à falha dos outros meios de comunicação, mas o serviço não tinha ainda desenvolvimento e operacionalidade que sustentasse um mínimo de eficácia. O capitão Mascarenhas Inglês faz um breve ponto de situação da ação deste meio no dia 9 de abril:

A estação de TSF da Divisão estava montada no abrigo da estação de reserva (…). Podia comunicar com a antiga estação diretora do CEP enquanto esta funcionou e com as três estações adstritas às Brigadas na linha. Quanto às comunicações com o XI Corpo deveriam ser possíveis se dele tivessem sido recebidas as necessárias indicações para o serviço. Na Divisão não havia conhecimento das cha­madas da estação do Corpo nem da chave da cifra.

Quando, cerca das 5.30 h, me dirigi para à estação de reserva, man­dei os telegrafistas fazer chamadas e pedir informações para as Brigadas.

Dizendo-me os homens que ainda não tinham conhecimento da palavra de cifra para esse dia, mandei-os entretanto telegrafar em linguagem clara visto que o texto do despacho era apenas o pedido de informações e mandei chamar o Oficial TSF que comparecia pouco depois, bem como o tenente Ivo de Carvalho. Nenhuma resposta se obteve, contudo, a estas transmis­sões.

W/T 130w Wilson transmitter (estação diretora do Corpo, comprimentos de onda 350/450/550 m, alcance 7/8 km)
Tuner short wave Mk III (recetor, em conjunto com a estação Wilson)

Também as comunicações com os aeroplanos não tiveram qualquer papel, embora o posto de receção dos despachos tivesse sido montado no local previsto, aí permanecendo desde as 5h15 até as 13h00, “não tendo sido recebido nenhum despacho”.

A retirada

Era inevitável que ainda no dia 9 fosse decidido que as unidades e serviços não empenhados retirassem para a retaguarda, procurando salvar homens, materiais e equipamentos. A ordem chegou por volta das 13h00, como refere Mascarenhas Inglês:

Pouco depois das 13 horas, conforme instruções recebidas, ordenei que a Companhia [2ª Companhia Divisionária de Telegrafistas] iniciasse a marcha. (…)

Solicitei autorização para que a Companhia se dirigisse a St. Flo­ris onde ocuparia o antigo acantonamento da Companhia de Telegrafistas de Campanha, se o QG estacionas­se em Calonne.

Pouco depois recebeu-se ordem de marchar para St. Venant e mais tarde para Lambres. (…)

Também o material mereceu a atenção do capitão Mascarenhas Inglês que nos transmite a seguinte informação:

Logo que se previu a possibilidade de re­tirada mandei preparar o camião.

Cerca das 13 horas começou este carro transportando para St Floris o material telegráfico. Ficou em Lestrem até perto das 20 horas para dirigir esse serviço o alferes Craveiro Lopes. O camião levou três car­gas de material de Lestrem para a retaguarda, tendo ainda trazido algum material um carro de parque da 2ª Companhia Divisionária de Telegrafistas. Conseguiu-se assim salvar todo o material importante, quase todo o material miúdo e de consumo exceto cabo armado, alguma mobília e os artigos da Repartição como arquivos, (…) máquinas de escrever e artigos de Re­partições do QG2.

Quando o camião na sua última carreira passava junto a mim em St Venant, ordenei ao alferes Craveiro Lopes que procurasse arranjar uma arrecadação em Berguette em que descarregaria o material que o camião levava, voltando este imediatamente e tantas vezes quantas necessárias a St Floris até que o material ficasse todo em Berguette. Arranjou-se a arrecadação em Guarbecque e o camião voltou a St Floris donde trouxe durante a noite uma nova carga.

Conclusão

As tropas portuguesas não chegaram a compreender a razão da sua prolongada presença na frente de combate. Todos, comandos e tropas, se foram apercebendo que tinham uma retaguarda débil, que as condições de emprego como força militar em operações era extremamente fraca, que o moral se degradou continuamente. As unidades tinham falta de oficiais, a instrução tinha sido deficiente, o apoio não estava ao nível do de outras unidades do mesmo escalão. Os soldados não gozavam férias, estavam muito longe da sua terra, confrontavam-se constantemente com ausências mal explicadas dos seus oficiais.

A atividade militar na zona intensificou-se de forma gradual mas constantemente. O mês de março foi extremamente penoso para as unidades portuguesas. Os comandos portugueses aperceberam-se desta situação, mas o comando britânico manteve a ideia de que o ataque principal que as forças alemãs preparavam não seria na região de Armentières. Só em 6 de abril as tropas portuguesas receberam ordens para manterem na linha da frente apenas a 2ª Divisão, comandada por Gomes da Costa, passando para o comando do XI Corpo de Exército. O tempo foi curto para consolidar as inevitáveis mudanças táticas resultantes desta decisão.

Mas o pior estava para vir. As visitas a 6 e 7 de abril do comandante do XI Corpo, general Hacking, ao comando da 2ª Divisão coincidiram com as notícias dos preparativos alemães e a constatação do nível moral e do estado físico das tropas portuguesas, o que levou o comando britânico à decisão lógica, que uma prudente análise de situação já deveria ter aconselhado há bastante tempo. A 8 de abril foi dada ordem para a substituição da 2ª Divisão por uma divisão inglesa, movimento que deveria iniciar-se a 9 de abril. Era tarde e a decisão tardia desmoronou o moral das primeiras linhas portuguesas. Se a vontade de lutar e a disposição anímica era já extremamente baixa, a perspetiva de sair da frente anulou toda a capacidade de resistência e de comando. A situação só poderia conduzir a um desastre, se o ataque se realizasse exatamente nesse dia. Foi o que aconteceu.

O ataque alemão de 9 de abril inseriu-se na sua estratégia de rotura da frente em sectores estreitos, com grande superioridade de meios. Os comandos alemães sabiam que seria a última oportunidade de o conseguirem. O ataque foi bem planeado, bem preparado e executado de forma eficaz. A preparação da artilharia foi longa e intensa. Os gases de combate foram usados da forma habitual. O assalto fez-se de acordo com os princípios táticos consolidados pela longa guerra de trincheiras.

O general von Quast, comandante do exército alemão no sector de la Lys, e o seu chefe de Estado-maior, o TCor von Lentz

Houve resistências, mas os confrontos foram pontuais e não duraram mais que escassas horas, o tempo necessário ao avanço das tropas alemãs. Em seis horas ruiu toda a resistência das primeiras linhas; ao fim do dia estava conquistado todo o sector português e os sectores adjacentes e, em consequência, consolidada a penetração alemã.

As necessárias mudanças do dispositivo e a respetiva substituição de unidades agravaram até ao limite as fragilidades do sector português. As comunicações sentiram acrescidas dificuldades de resposta às alterações táticas decididas em cima da hora. Todas as ações de apoio no sector português acabaram por sofrer os efeitos do principal ataque alemão, em especial do prévio bombardeamento de artilharia, que tornou inoperacionais, nas primeiras horas, quase todos os sistemas de ligação. Ao princípio da tarde, as instruções foram no sentido de se iniciar a retirada, tanto quanto possível.