Post do nosso leitor e colaborador Sr João Freitas, recebido por msg:

Com base numa patente alemã, já em 1910 e 1913, na Rússia, se fizeram testes de “referenciação pelo som” da artilharia inimiga, ou seja, a determinação da posição de uma peça de artilharia ou bateria, através do som emitido durante o seu próprio disparo. O processo baseava-se no princípio da onda de som gerada pelo disparo (ou qualquer outro som) se propagar no espaço em círculos concêntricos e a uma velocidade conhecida. Para isso as tropas “X” interpunham entre si e a suposta posição das peças do inimigo “Y”, uma barreira de microfones especiais distanciados entre si centenas de metros. A análise matemática posterior de diversos parâmetros adquiridos durante o registo do disparo (ver esquema), dava a “X” posição da artilharia inimiga “Y”.

Esquema dos cálculos a serem efectuados
Esquema dos cálculos a serem efectuados

De maneira bastante simplista podemos explicar que o disparo do “inimigo”, ao criar uma onda de som circular (de baixa frequência), é primeiramente registado pelo microfone que estiver mais perto da fonte, esse mesmo som ao progredir “bate” sucessivamente nos dois microfones seguintes e será também registado. Como entre o recebimento vindo do primeiro microfone e o recebimento vindo de pelo menos mais dois outros havia duas ou mais diferenças de tempo, o conhecimento desses pequeníssimos lapsos permitia após equações complexas determinar um círculo que corresponderia às ondas se som e o seu respetivo centro. Esse centro determinava a origem do som, e portanto a posição da peça inimiga. O inverso também era possível, ou seja; determinar com precisão o local onde estava a cair o “nosso” fogo, através do registo das deflagrações.

Nem tudo eram rosas, o sistema era complexo, moroso de instalar, e passível de influências meteorológicas e outras, além disto era necessário um outro posto mais avançado, entre a barreira dos tais microfones e a bateria inimiga. O militar que guarnecesse este posto, apesar de também desconhecer a real posição da artilharia inimiga, desencadearia (via rádio) o processo de registo, ao ouvir o som de um primeiro disparo, ou ao ver o clarão provocado á boca da arma.

Pelas razões apresentadas, em teoria, era bom mas na prática dificilmente funcionava. Portugal vem a receber da Comunidade Britânica conjuntos SR/HQ que apenas foram utilizados em manobras e com pouca eficiência. Julgamos até que os aparelhos tenham chegado cá sem os calculadores necessários a obter as posições de tiro, sendo os aparelhos usados posteriormente como simples recetores/transmissores. É sobre eles que vos falamos hoje.

SR HQ
SR HQ

Os S.R. MKII-H.Q. (1) e os S.R. MKII – O.S. (2) são sistemas radio pertencentes á família “Wireless Set”. Desenvolvidos e usados durante a 2ª Guerra Mundial, chegam ao nosso país no final de quarenta, havendo na pouca referência sobre eles, a indicação da sua distribuição á Arma de Artilharia. Presentemente caíram no mais profundo esquecimento, mesmo a antigos militares a nomenclatura SR-HQ e SR-OS nada lhes diz.

SR OS
SR OS

Um conjunto completo compreenderia uma estação S.R. – H.Q. como posto de comando, ou posto registador e calculador das informações sonoras recebidas, três a cinco S.R. – O.S. como detetores dos sons, fazendo a tal barreira com os microfones e mais uma a três S.R. – O.S. no papel de posto mais avançado (dando a ordem para iniciar o registo dos sons). Quantos mais postos equipados com microfones houvessem no terreno mais precisão se obtinha nos cálculos de determinação de rumo e distância. Como estes aparelhos eram também “normais” recetores/transmissores, era através deles que passava o tráfego de mensagens entre o posto de comando, os postos captores de som e o posto avançado.

Os dois rádios eram diferentes fisicamente sendo o H.Q. um posto com características de “fixo” e o O.S. um posto adaptado ao transporte ao dorso, tendo para isso adotado a caixa exterior do “Wireless Set 62”. Além de uma gama de frequências comum compreendida entre os 9 e os 10.5mHz, possuíam ainda cinco canais (cada canal tinha um ajuste de mais/menos 20kHz) para a receção das informações enviadas pelos microfones, peças que á primeira vista mais pareciam umas grandes marmitas do que verdadeiros micros, necessitando que fossem colocados no solo em buracos superficiais para não sofrerem influencias parasitas. Os dois rádios tinham conversores rotativos alimentados a baterias de 6v.

(Retirado de um artigo anterior, de nossa autoria, publicado na revista QSP)

João Freitas

Notas:

(1) – S.R. MKII – H.Q. Station (Sound Ranging Mark II HeadQuarters Station) Posto de Comando, Modelo 2, para referenciação pelo som.

(2) – S.R. MKII – O.S. (Sound Ranging Mark IIOut Station) Posto Exterior, Modelo 2 para referenciação pelo som.

(3) Enquanto os EUA sempre preferiram determinar os diversos modelos de um dado aparelho militar por uma letra (ex. BC-611-C e BC-611-F), acrescentando ou não a palavra “MODEL” ou “TYPE”, a Comunidade Britânica deu primazia ao termo “MARK”, ou á sua abreviação “Mk.” seguido por uma sucessiva numeração romana (ex. Wireless Set Nº19 Mark I, seguido pelo Mark II, Mark III etc.).

3 comentários em “Os “S.R. MKII – H.Q. STATION” e os “S.R. MKII – O.S.”

  1. O Sr. João Freitas teve uma atuação particularmente brilhante no Blogue, na sua fase inicial, entre Fevereiro e Julho de 2012. Durante estes 5 meses publicaram-se 12 posts da sua autoria (quantitativo que até agora só 3 conseguiram superar), todos de inegável qualidade e interesse. Depois, pura e simplesmente desapareceu, não tendo havido até ao presente post, qualquer intervenção sua.

    O porquê desta longa ausência intrigou-me. O que teria acontecido? Era estranho porque nos seus textos era mais que evidente a consistência dos seus conhecimentos, o gosto que tinha pelo estudo dos equipamentos, pela sua reconstrução e também pela sua divulgação.

    O mistério foi desvendado nas comemorações do 4º aniversário do Museu Militar de Elvas, onde tive o enorme prazer de o encontrar. Explicou-me que o problema resultava de ter errado o endereço do contato com o Administrador do Blogue. Corrigido imediatamente o erro, passámos, a partir de agora, a ter a sua colaboração inaugurada com o presente texto sobre material de deteção da Artilharia Inimiga pelo som.

    Felicitando-o pelo seu promissor regresso espero voltarmos a ter o prazer de o continuar a ler, no futuro, em prosseguimento da importante obra que todos lhe reconhecem.

  2. Os “S.R. MK ll – H Q. STATION e os S.R. MK ll – O.S.”
    Para completar estas informações técnicas do Sr. João Freitas vou aqui deixar alguma história.

    – O “Sistema de referênciação pelo som” chegou a Portugal vindo de Inglaterra e foi distribuído à Escola Prática de Artilharia (EPA) em Vendas Novas em 12 Maio de 1950.
    – Dias depois apresentaram-se na (EPA) dois Engenheiros ingleses, um militar (TCor) e outro civil para ministrarem a instrução operacional dos equipamentos que teve a duração de dois mêses. Com eles veio também um Major (Eng) nomeado pelo Ministério do Exército para servir como tradutor.
    – O Comandante da (EPA) Cor (Art) Arnaldo de Matos mandou nomear três Oficiais de Artilharia (Capitães Correia Leal, Palminha e Vieira) e três Sargentos de Artilharia ( 2° Sargentos (Pau-Preto, Gonçalves e Semedo) para essa instrução operacional.
    – Por sugestão dos Engenheiros ingleses foram ainda nomeados o Cap (Eng) Mário Andreia e o 2° Sargento ( Mecânico Montador Rádio Electricista) Armindo Carvalho para aprendizagem nas técnicas de manutenção e reparação dos equipamentos.
    – O Cap (Eng) Mário Andreia e o 2° Sargento (MMRE) Armido Carvalho foram os grandes dinamizadores entre 1950 e 1957 para o eficaz rendimento dos equipamentos tanto na instrução como nos exercícios operacionais.
    – Passaram pela (EPA) os alunos dos cursos de artilharia da Escola do Exército nos seus tirocínios anuais e também tirocinantes das Escolas Militares de Artilharia de Espanha.
    – Regularmente eram efectuados exercícios de fogos reais na região de Vendas Novas, Canha, Pegões e Montemor-o-Novo e ainda nas chamadas “Manobras” em Santa Margarida, onde os equipamentos foram sempre muito eficientes.
    – Para além do ” Sistema de Referênciação pelo Som” também foi adquirido o “Sistema de Referênciação pela Luz”. Este equipamento acabou por ser pouco utilizado devido à sua fraca eficiência.
    – No período de 1950 a 1957 a (EPA) foi visitada por altas entidades civis e militares portuguesas e espanholas para assistirem aos exercícios de fogos reais da artilharia com o objectivo de verem a eficácia dos nossos artilheiros no manuseamento do “Sistema de Referênciação pelo Som” e nos resultados obtidos.
    – A partir de 1957 a utilização destes equipamentos passou por dificuldades devido à transferência do Cap (Eng) Mário Andreia para uma unidade do Serviço Material e do 1° Sargento Armindo Carvalho para a Escola Central Sargentos em Águeda para frequentar o curso de Oficiais. Eles eram os grandes suportes do funcionamento eficaz dos equipamentos.
    – Em Abril de 1966 o Comandante da (EPA) Coronel (Art) Delgado e Silva requereu uma equipa técnica ao Ministėrio do Exército para verificar da possibilidade da reparação ou abate dos equipamentos.
    – O Ministério do Exército nomeou a Escola Militar de Electromecânica (Emel) para formar essa equipa técnica. A (Emel) nomeou o Ten (Serviço Material/Ramo Eléctrico) Fernando Cruz e os 2° Sargentos, Viegas de Carvalho (Radiomontador) e Quintela Leitão (Óptica de Instrumentos de Precisão).
    – Nenhum dos nomeados tinha qualquer conhecimento dos equipamentos. O 2° Sargento Viegas de Carvalho lembrou-se que a única pessoa que podia dar uma ajuda era o seu pai o então Cap (SMaterial) Armindo Carvalho (já citado anteriormente) que esteve na (EPA) entre 1930 e 1957 e foi o pioneiro da manutenção destes equipamentos e que estava a poucos dias de embarcar para Angola.
    Consultou os seus apontamentos e deu ao filho umas lições sobre todo o material e elaborou um “rascunho” de relatório que apontava para o abate dos equipamentos, baseado na falta de material para a sua reparação em Portugal e nos custos elevados desses mesmos materiais se adquiridos em Inglaterra.
    – A equipa técnica quando se apresentou ao Comandante da (EPA) para iniciar a verificação operacional dos equipamentos recebeu uma indicação deste “…vejam lá se me conseguem abater essa sucata…”.
    – A equipa técnica esteve quatro dias na (EPA) regressando à (Emel) onde elaborou o relatório que foi baseado no tal “rascunho” do Cap (SMaterial) Armindo Carvalho e enviado ao Ministério do Exército.
    – O relatório foi aceite e todo material foi abatido à (EPA) em 1967.

    PS. Parte destas informações só foram possíveis depois de consultar os apontamentos do meu pai o resto foi a minha experiência como participante da equipa técnica.

    1. Que bom meu caro Viegas de Carvalho ter tido a oportunidade de ler este teu comentário. Por um lado apareceres neste blogue o que deves continuar a fazer, nomeadamente num texto sobre a importância dos sargentos radiomontadores nos sistemas de Transmissões de Campanha na Guerra do Ultramar (1954 a 1974). Por outro lado transportaste-me ao meu início de carreira, maio de 1954, Escola Prática de Infantaria (Mafra), 2º sargento de Engenharia (radiomontador) aos 18 anos. Primeiro embate reparar Aparelhos de Referenciação de que nunca tido ouvido falar. Eram americanos, agarrei-me aos pormenorizados TM e tudo correu bem depois de muita volta ao assunto havendo algo de grave na provocação das avarias de que só tive conhecimento muito mais tarde. Aqueles equipamentos não eram pesados e podiam ser transportados facilmente por estarem bem arrumados em sacos. Seria o mesmo material material utilizado na Artilharia? Se tiveres fotografias envia.

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