1. A Chegada a Bissau
Cheguei ao aeroporto de Bissalanca no dia 1 de Julho de 1972 e, quando desci as escadas do velho DC-6, quase sufoquei com o bafo quente e húmido que me inundou e que me levou a dizer ao camarada que me esperava, o capitão José Coutinho, que não iria suportar aquele clima. Com o seu bom humor foi-me dizendo que não me preocupasse porque havia todos os dias avião para Lisboa.
Na viagem para Bissau, enquanto me punham ao corrente da situação militar, ia registando intensamente as minhas primeiras emoções de estar pisando terra africana. África é demasiado impressiva para que a atenção não se concentre quase exclusivamente no que se vê. A luz e as cores, as tabancas e as pessoas com os seus trajes típicos, sobretudo as mulheres com os seus panos roncos (capulanas), alguns belíssimos, enfim, um pacote de emoções fortes que tornaram mais leves as emoções da guerra.
O Agrupamento de Transmissões em Bissau era um aquartelamento confortável, com todas as suas instalações feitas de raiz, bem adaptadas à função e ao clima. Bem perto ficava o Grupo de Artilharia nº 7 (GA-7) e fazia-se a pé o percurso até ao Clube Militar de Oficiais (CMO) em Santa Luzia, mas sempre se utilizava o Jeep Willis para evitar a exposição ao sol do meio-dia.
Ao chegar à Porta de Armas fiquei com uma perspectiva global do aquartelamento e obtive logo aquela primeira sensação de espaço, muito espaço, onde dominava a cor da terra, vermelha, surpreendentemente agradável, temperada pelas cores quentes das ramagens das árvores de grande porte, que ao fundo se avistavam.
As Messes de Oficiais e Sargentos, acabadas em 1973, estavam decoradas com painéis do pintor António Carmo, que era soldado radiotelegrafista e que bem carregou nas cores quentes africanas. O mesmo pintor que haveria de pintar, anos mais tarde, a excelente tela do DGMT que hoje se encontra no Museu das Transmissões. E refiro logo as messes porque foi a primeira pausa para compensar o choque térmico da chegada.
Seguiu-se a apresentação e, logo nesse mesmo dia, a passagem do testemunho pelo Cap. Cordeiro, que eu ia render. Não deve ter demorado mais de uma meia hora a passar-me a informação! Na altura fiquei admirado, depois compreendi que, quando há NEP,s (Normas de Execução Permanente), IPTm’s (Instruções Permanentes de Transmissões) e ITTm’s (Instruções Temporárias de Transmissões), bem elaboradas, tudo se torna mais fácil. O resto era formação profissional e capacidade de decisão. Foram assim muito positivas as primeiras impressões de que aqui deixo registo, pela excelente organização que encontrei.
O Agr Tm tinha escolhido o dia 9 de Janeiro (em 9 Jan de 1901 o Serviço Telegráfico Militar passou para a Engª) para o seu Dia da Unidade. E em 9 de Jan de 1972 hasteou pela primeira vez a bandeira no Agrupamento com a presença do Gen. Spínola, o Comandante-Chefe que, mais tarde, visitaria o Centro Emissor do STM em Antula.
No gabinete do Comandante, o Ten-Coronel Mateus da Silva, dominava a tela do anjo S. Gabriel, patrono das telecomunicações, também da autoria do mesmo pintor e que hoje se encontra em posse de um oficial da Arma.
Na frente do edifício de comando havia um espaço ajardinado, no topo do qual, e num mastro assente num poliedro, flutuava a bandeira portuguesa.
Ao fundo, já fora da área do quartel, erguiam-se, majestosas, as grandes árvores tropicais, dominando os embondeiros (ou baobás), em cujos ramos mais altos se posicionavam os jagudis, lúgubres aves de rapina locais.
Enfim, um pomar de cajueiros e uma horta, pomposamente chamada de machamba, completavam a paisagem próxima.
Era neste ambiente, onde dificilmente chegavam os sons da guerra, que se planeavam as transmissões de campanha. Na guerra do ar condicionado, como dizia o Capitão Salgueiro Maia, sempre que nos visitava. E sempre que o fazia ligava o ar condicionado do meu gabinete, que eu mantinha desligado para evitar os choques térmicos nas saídas para o exterior.
Foi este ambiente, inesperadamente agradável, que vim encontrar no dia 1 de Julho de 1972. Foram meus companheiros de voo o Capitão comando Carlos Matos Gomes e o Cap miliciano José Manuel Barroso, à data jornalista do Jornal “República”.
Ao fim da tarde desse dia, e enquanto me refrescava na esplanada do Clube, chegou-me aos ouvidos o som de várias explosões que não percebi se tinham origem na cidade ou mais longe. Preocupado, olhei em redor e alguém me disse que era o ataque a Jabadá. Espantado, repeti a pergunta: – o ataque a Jabadá??!! Foi-me então explicado que mais ou menos todos os dias àquela hora, o PAIGC bombardeava Jabadá, na outra margem do rio Geba. Era mais uma das muitas surpresas que me aguardavam na guerra da Guiné.
O IN, com aquela acção, marcava o terreno psicológico impondo a sua vontade. Não havia vítimas porque aquele ataque anunciado punha as NT nos abrigos (valas cobertas com troncos de árvores) durante meia hora.
A segunda emoção da minha chegada à Guiné acontece quando, já de noite e tomando um digestivo na mesma esplanada, assisto a uma debandada geral dos presentes, apenas porque umas gotas de água refrescantes começavam a cair. Fui o último a recolher-me debaixo do alpendre, quando já se tinha iniciado o maior espectáculo ao vivo de uma fenomenal trovoada em que os flashes ininterruptos dos relâmpagos transformaram a noite em dia e permitiram a obtenção de fotos com sabor especial. Talvez tenha assistido a mais trovoadas como esta, mas a primeira ficou indelevelmente gravada na minha memória.
Naquele tempo um Capitão tinha direito a viatura (Jeep) com condutor e impedido. Fiquei com o impedido do Cap Cordeiro que era balanta e tinha experiência. O impedido não tinha muito que fazer: algumas limpezas em casa, ir buscar a refeição à messe numas marmitas, quando necessário. Ou seja, era um pouco a doutrina do Cap Daniel Ferreira que dizia que “o Oficial, na Unidade, só tem que estar”. O impedido, na realidade não tinha grandes missões atribuídas, tinha de estar! No mínimo supervisionando o trabalho da empregada doméstica que era, aliás, a tarefa preferida do António, de seu nome.
E lido isto, hoje, acharemos que eram mordomias duma época que passou sem saudades. Pensando bem, hoje, o impedido seria o secretário particular e, assim, já não se colocariam questões de melindre social.
Porque falo destas minudências e de outras que irão aparecer? Porque quando não pudermos explicar fisicamente estas vivências estranhas, algum curioso leitor as apreciará e testemunhará. O que é que apreciamos mais sobre as guerras que estudámos? As tácticas e o armamento ou as saborosas pequenas histórias do dia-a-dia que, doutra forma, sempre ignoraríamos e cujas fantasias ficam sempre aquém da realidade?!
À noite recolhi a casa do Cap. Cordeiro (por alcunha o Verde) que eu ia render. Seria nesta casa que me instalaria, aguardando a chegada da família, que só viria a estar comigo seis meses, por questões de segurança. Esta casa ficava na Rua Gen. Arnaldo Schulz, o anterior governador, e onde era vizinho do Coronel Saraiva, um camarada de Infantaria que não tinha casa no Continente e que sempre tinha vivido no Ultramar até uma idade já avançada e com duas filhas adultas.
Era ele o Director do Clube Militar de Oficiais. Curiosamente viria ainda a cruzar-me com ele nos Açores onde, já na Reserva, viria a acabar o seu serviço militar, refugiando-se a seguir e, finalmente, não no Continente, mas na ilha de Santa Maria! E ao escrever estas linhas ao correr da pena, recordo-o com saudade pela companhia que me fez na Guiné e nos Açores e porque é dele a frase para mim mais marcante que ouvi na altura do PREC (processo revolucionário em curso) e que foi dita aos oficiais que comandava numa unidade da RMN: os senhores mantenham-se sempre unidos, nem que seja contra mim!
Os recém-chegados à Guiné eram chamados “periquitos”, talvez porque ficavam pasmados a contemplar tantos periquitos juntos!
Na minha primeira formatura de almoço percebi vagamente que havia no ar uns suaves piu-pius. Perguntei o que significava aquela manifestação quase colectiva. Era a saudação da praxe ao novo periquito!
E neste primeiro serviço de Oficial de dia guardo ainda bem fresca a primeira noite de vigília. Ainda não estava adaptado ao calor. Tudo o que fosse peso a mais me incomodava, até a pistola “parabellum” à cintura. Que saudade das noites frescas da EPTm no Porto! Não resisto a citar uns miseráveis versos que esta primeira noite no quartel em Bissau me suscitou:
O dia passou com formaturas, faltas e viaturas
A noite chegou silenciosa, escura e traiçoeira
De porta fechada e luz apagada
O Periquito na defensiva
Aguarda nervosamente o ataque do inimigo
E o inimigo chegou!
Atacou, fez dor e sangue
E o periquito acendeu a luz e o “lion brand”!
A guerra acabou e o guerreiro vitorioso e feliz
Rendido ao cansaço, ao suor e ao cheiro do “lion brand”
Pode, enfim, repousar
Na ilustre cama sem lençol nem fronha
No triste quarto da noite medonha
O meu primeiro inimigo foram realmente os mosquitos. Depois os gafanhotos, enormes, que se colavam às costas em voos picados, quando fazia a ronda nocturna às sentinelas e, finalmente, os grilos que sazonalmente cobriam todo o chão pisável, aos milhões, e que era, portanto, obrigatório esmagar com aquele ruído característico e chato.
O Cap. Cordeiro devia regressar a Portugal dentro de poucos dias após a minha chegada, mas, como no dia da partida chegou já depois da chamada, foi obrigado a ficar mais um mês tendo sido punido por escrito. E isto pesou-me na consciência porque contribuí para o atraso à chegada ao aeroporto. Registo aqui a proverbial calma do Cordeiro que, pacientemente, lá aguentou mais um mês dizendo que até lhe dava jeito porque assim ainda levantava um carro que tinha comprado em segunda mão ao Cap. Almeida Pereira (de alcunha o C.O.M.).
Bom, atalhando, quem levantou este carro fui eu, muitos mêses depois, mas ao sair da oficina (onde lhe tinham aplicado umas rodas em melhor estado) parou na primeira curva porque as rodas, que eram maiores do que os guarda-lamas, bateram nestes, impedindo o carro de andar. Esta foi a melhor anedota que contei naqueles dias.
2. As Transmissões de Campanha
O Agr Tm tinha uma Comp TSF, comandada pelo Capitão José Tavares Coutinho depois rendido pelo Capitão Daniel Ferreira e uma Comp de Reab e Man de Mat Tm (CRMMTm), comandada pelo Capitão Rogério Nair dos Santos. Dava também apoio logístico à Delegação do STM, chefiada pelo Capitão António Pinho de Almeida, sendo seu Adjunto o Tenente Félix, que dependia tecnicamente da Chefia do STM em Lisboa.
Esta dualidade de dependências frequentemente criava situações de atrito quando tinha que se exercer acção disciplinar. Os pergaminhos do STM levavam sempre este a perspectivar tecnicamente as infracções disciplinares chamando a si a competência disciplinar.
Neste período de tempo (72/74) estagiaram na Guiné os Tenentes Praça, Guerreiro e Segundo e, mais tarde, o Tenente Camilo. O Tenente Segundo foi destacado para Bafatá, onde estava instalado um Destacamento Avançado da CRMMTm. Além deste Apoio-Directo, praticava-se já a Troca-Directa de equipamentos da dotação orgânica das unidades operacionais.
O Tenente Praça foi destacado para a região do Cantanhês, no Sul, onde o PAIGC exercia o seu maior esforço. E registe-se que a acção deste nosso camarada foi de uma grande coragem, pois chegou a repor instalações danificadas pelo fogo IN ainda antes de acabar a flagelação, o que lhe valeu um louvor do Comando Militar de Bissau.
Em 1973, nas redes de HF, recolhiam-se os últimos rádios AN/GRC-9 e substituíam-se pelos RACAL TR-28. No entanto, as comunicações tácticas no teatro de operações eram, sobretudo, de VHF, dada a pequenez do território e as curtas distâncias que separavam as Unidades. Em instalações fixas eram usados AN/PRC-10, já muito velhos, e os IRET PRC-239 com antenas RC-292 (com plano de terra) em mastros CTH de cerca de 9 metros.
Ligavam-se com estes meios os rádios portáteis AVP-1 e IRET PRC-236. As comunicações de VHF só eram perturbadas pelas árvores de grande porte e pelas matas, já que o território é quase plano (máxima elevação de cerca de 300 metros na região sul) e, naturalmente, pela linha de vista.
Nas Instruções de Aperfeiçoamento Operacional (IAO), a que eram submetidas as unidades antes de irem para o seu destino, normalmente realizadas no Campo Militar do Cumeré (a cerca de 50 Km de Bissau), eram dadas indicações práticas de uso dos meios e também soluções expeditas como a de se aproveitarem as construções das formigas baga-baga de alguns metros para melhorar as comunicações com a base.
O E/R AVP-1 não era operado por especialistas de transmissões e era necessário explicar que, em caso de ligação com os meios aéreos (terra-ar), não se devia apontar a antena ao aéreo mas sim colocá-la a 90 graus, tão frequente era este erro de uso.
A pergunta mais frequente dos quadros que já tinham estado em Angola ou Moçambique era porque é que os Racal, que tão bem respondiam nestes territórios, não tinham grande aplicação na Guiné.
Efectivamente, a Guiné pela sua pequenez não se ajustava à filosofia de propagação em HF. A onda de solo amortecia rapidamente devido à floresta que sempre se colocava em qualquer direcção e, vencida a zona de silêncio, estava-se já perante distâncias superiores a 100 km só ultrapassáveis com onda reflectida na ionosfera, apenas usada nas comunicações entre escalões superiores a Companhias, ou seja CAOP’s (Comandos de Agrupamento Operacional) ou COP’s (Comandos Operacionais) ou destes com o Comando-Chefe em Bissau, ou seja, em ligações de carácter estratégico e não táctico, que era o terreno da guerra.
Acresce ainda referir que naquela zona do globo o forte ruído atmosférico provocava um acentuado “fading” (cansaço) na propagação ionosférica e, por último, mas não o menos importante, a fronteira estava logo ali, eventualmente com o IN à escuta de comunicações deste tipo. Sabia-se já, aliás, que o PAIGC possuía rádios russos de HF (P-104M) e semelhantes aos nossos AN/GRC-9. Há um exemplar destes no Museu das Transmissões, capturado ao IN em 1968.
Um dos problemas que se colocava aos operadores de transmissões era a ocupação de uma mão com o uso do AVP-1 que, não só impedia o manejo de uma arma, mas também dificultava os “mergulhos” no chão aquando da reacção a um ataque. A CRMMTm, ao tempo do Cap. António Pena, fabricou vários micro-altifalantes que aligeiravam o problema.
A sua resolução só viria a ser ultrapassada com a introdução no campo de batalha de um rádio civil de origem sueca, os equipamentos da família STORNO que, em versões de portátil, móvel e base, constituíram a revolução das comunicações tácticas em 1973. Permitiram maior liberdade de movimentos e garantiam melhores comunicações. Curiosamente vindos da Suécia, um país que apoiava os movimentos de libertação, nomeadamente o PAIGC, cujo apoio se prolongou até fins de 2005.
Até as comunicações permanentes os usaram para a transmissão de mensagens codificadas (grupos de 5 letras) que os operadores liam em alfabeto fonético a uma velocidade que tornava impossível a sua inteligibilidade a um não especialista. Tinham, porém uma dificuldade de operação: o emissor era posto no ar através da própria voz (sistema de “voc” -voice operating control), sendo preciso manter sempre um tom de voz contínuo para evitar que a conversação se interrompesse. Era, no fundo, uma questão de algum treino e atenção. Estes rádios possuíam ainda um sistema de chamada bitonal que facilitava o contacto e melhorava a segurança.
Como curiosidade, regista-se o facto de, com estes equipamentos utilizando as antenas RC-292, ter sido possível estabelecer ligações superiores a 100 km, o que em VHF (banda alta) é teoricamente impossível. Explica-se este facto porque o território da Guiné, com vastas zonas húmidas e, na maré cheia com quase um terço do território coberto de água, configura ambientes excepcionais de condições de temperatura e humidade do ar, permitindo a definição de índices de refracção favoráveis à propagação a grandes distâncias.
Era como se temporariamente se estabelecesse um guia de onda ao longo de grandes distâncias canalizando as comunicações. Durante alguns mêses manteve-se um registo de recordes destas experiências.
Mas o contrário também acontecia. Quando em aproximação por barco à ilha de Bolama, cessavam as comunicações com o alvo em linha de vista!
Também se explique, talvez, por um efeito de refracção adverso em que o feixe emergente sobe e se perde na atmosfera passando por cima do alvo, fenómeno semelhante ao que acontecia na ligação por feixes hertzianos entre o STM em Lisboa e o Centro Receptor de Alcochete, na maré cheia.
Apesar de o apoio de transmissões ser eficaz – o material avariado era substituido sempre que possível ou reparado com celeridade – comecei a aperceber-me de que muitas vezes os rádios não funcionavam porque as antenas estavam em péssimas condições (esfarrapadas as do AVP-1), o que mais vantagem trazia para o uso dos STORNO, porque as antenas eram curtas em helicóide encapsulada.
Registo aqui experiências que se fizéram na área da Guerra Electrónica, conduzidas pelo Capitão Coutinho e que utilizaram radiogoniómetros instalados em helicópteros. A detecção das emissões do IN não foi fácil e uma das razões foi a da necessidade de proceder à correcção dos valores obtidos por causa da influência da estrutura metálica dos helis.
3. A Perda da Supremacia Aérea
As comunicações mais críticas no TO eram, sem dúvida, as de pedido de apoio aéreo (APAR). A rede de APAR de VHF funcionava nas frequências exclusivas de 49,0 e 51,0 MHz. Em combate, as ligações faziam-se entre os AVP-1 e os ARC-44 do aéreo.
Esta ligação era dificultada pela não total compatibilidade dos rádios do Exército e da Força Aérea, mas sempre se fazia satisfatoriamente, o que era vital, pois em situações de combate, nomeadamente de emboscadas, o apoio aéreo era prestado em cerca 10 minutos, dadas as curtas distâncias em jogo.
Tal “status” garantia às NT que as situações de confronto eram relativamente curtas, pois os guerrilheiros do PAIGC sabiam que rapidamente ficavam sob fogo aéreo dos aviões T-6 e Fiat G-91 e retiravam, dispersando antecipadamente.
Outro apoio vital era o das evacuações por helicóptero (Allouette) directamente do mato para o Hospital Militar de Bissau (HMB). Os pedidos de apoio aéreo feitos para a Base Aérea Militar eram em HF, com os AN/GRC-9 e os RACAL TR-28.
No entanto, o “status” da supremacia aérea, determinante para as NT desde o início da guerra em 1963, viria a perder-se em 1973, dez anos depois, com a introdução no campo de batalha, pelo IN, dos mísseis terra-ar SAM-7 (STRELLA), de fabrico soviético. Estes eram portáteis a dorso e actuavam orientados por raios infravermelhos e visando a fonte quente do aéreo.
Registo a este respeito os primeiros abates no TO de FIAT G-91, em Março de 1973, um com o Tenente Miguel Pessoa em Guilege que se ejectou e foi recuperado pelas NT (através de uma operação especial no dia seguinte) e outro, dias depois, pilotado pelo Ten Coronel Almeida Brito no Sul, que foi a primeira vítima desta nova arma.
Dela ainda recordo o episódio mais marcante que nos fez perceber a realidade fria da mudança de paradigma desta guerra que descreverei no capítulo seguinte.
4. A Retirada de Guilege
Pouco tempo depois, embora eu só viésse a saber deste episódio mais tarde, saberia do abandono de Guilege em condições dramáticas, onde o Major de Artilharia Coutinho e Lima comandava uma Comp. Metropolitana e uma Comp. de Milícias. Cercados durante vários dias, flagelados e com o Depósito de Víveres destruído, sem apoio aéreo, depois dos últimos abates de aviões nesta zona, retiraram para Gadamael Porto sem autorização superior e por uma questão de sobrevivência.
Por ter sido destruído o posto de transmissões ignorou-se o paradeiro destas tropas durante algum tempo. Viriam a ser detectadas pela Força Aérea que informou o Comando-Chefe. O General Spínola imediatamente retirou o comando e puniu com prisão o Major Coutinho e Lima. O seu erro foi salvar muitas vidas humanas!
5. O Cerco e a Libertação de Guidage
Dias depois dos episódios atrás descritos, sob os céus de Guidage, no Norte junto à fronteira com o Senegal, planavam duas avionetas DORNIER DO-27, que iam lançar abastecimentos e tentar evacuações, sobre o aquartelamento das NT, cercado há vários dias. A que estava mais baixa acabou por ser abatida, tendo a de cima feito pedido de apoio aéreo.
A este pedido, respondeu o Major Mantovani pilotando um bombardeiro T-6 (teco-teco) que sobrevoou o local em reconhecimento e picou sobre as forças IN sendo também abatido!
A segunda avioneta em acção de esclarecimento da situação, e julgando que o T-6 tivésse sido bem-sucedido, como era normal, baixou e foi também a sua vez de ser abatida! Foi assim que este episódio da guerra me chegou ao conhecimento e foi este o pior dia da minha comissão na Guiné! Todos percebemos que tinha mudado irreversivelmente o curso da guerra.
O Capitão Salgueiro Maia, após terminar a sua comissão na Guiné, tinha feito o espólio do material de transmissões (apenas do inoperacional ou perdido e objecto de autos de extravio) e aguardava com a sua Companhia o transporte de regresso ao Continente. Recebi dele também nesta altura o guião e a placa da sua unidade de Cavalaria, a Comp Cav 3420, cujo nome de guerra era “Os Progressistas”, boa premonição do que estaria para vir!
Viviam-se dias sombrios em diversas zonas e só se circulava entre povoações com escolta. Sabia-se que as NT estacionadas em Guidage estavam cercadas pelo PAIGC. Para grande surpresa minha e sem que oficialmente eu tivésse conhecimento da missão, apareceu-me no AGR Tm o Cap. Salgueiro Maia, pedindo para fornecer material porque ia partir com a sua Companhia, com a missão de abrir caminho até ao Norte e ajudar a libertar Guidage.
Foi com grande emoção que satisfiz o pedido e me despedi do meu camarada. Sabia do alto grau de perigosidade desta missão e também sabia porque que lhe era atribuida. Experiência, coragem e capacidade de comando! Como é que ele teria explicado aos seus homens que afinal a guerra ainda não tinha acabado para eles e que lhes estava reservado o pior bocado. Eles, que estavam ainda na Guiné por atraso do navio que os levaria de regresso a casa!
Nesta operação morreram ou ficaram estropiados dezenas de soldados portugueses.
A missão foi cumprida com a competência habitual do Capitão Salgueiro Maia.
No seu livro “Capitão de Abril”, Salgueiro Maia descreve esta missão com muito detalhe. Das outras forças que participaram neste rompimento do cerco de Guidage, cito a do Batalhão de Comandos Africanos, com três Companhias, uma delas comandada pelo Cap. Cmd Carlos Matos Gomes, que também fez a sua descrição no trabalho “Guerra Colonial” (em co-autoria com o Cor. Artª Aniceto Afonso) editado em fascículos pelo Diário de Notícias. Em ambos os relatos cada um ignora o outro, concentrando-se apenas no seu próprio papel.
Reporto estes factos de guerra, apesar de neles não ter participado, mas que seleccionei dentre todo um conjunto de situações vividas, para ilustrar o ambiente que se viveu na Guiné em 1973, o ano mais fatídico, e que viria a contribuir para as movimentações de capitães que levariam ao 25 de Abril.
O ano de 1974 não foi tão trágico porque as NT já não se expunham e o 25 de Abril acabou por evitar o tal desastre militar de que o Prof Marcelo Caetano falava. “Prefiro um desastre militar na Guiné a negociar seja com quem for”. Foi assim que Marcelo respondeu a Spínola quando o proibiu de continuar os contactos com o Presidente Senghor do Senegal.
“Resistir até à exaustão dos meios”. Foi assim que Marcelo Caetano mandou escrever na carta de Comando do General Bettencourt Rodrigues! Era a preparação para um desastre militar semelhante ao da Índia!
A Guiné era o peão que o regime dava a comer para salvaguarda de Angola, a jóia da coroa, e de Moçambique. O Regime não admitia negociações na Guiné para que as outras colónias não ousassem seguir o exemplo.
Isto, apesar dos sinais dos tempos, do exemplo dos outros países colonizadores, de todas as recomendações da ONU e do próprio Vaticano. O Papa Paulo VI recebeu os movimentos das guerrilhas em 1970, ignorando a posição conhecida da Igreja Católica portuguesa.
Era o sinal mais evidente da política do “orgulhosamente sós”.
6. A Missão a Jemberém
Outra situação de grande crise foi o ataque desferido contra a guarnição de Jemberém, no Sul do território, que deixou as NT sem o seu material mais precioso, o posto rádio de VHF.
Na ausência do comandante, fui chamado ao “brieffing” do comando-chefe onde assisti à exposição da situação, constatando-se a necessidade urgentíssima de repor os meios perdidos, o posto de rádio e a antena RC-292.
O General Spínola não me perguntou se tinha meios, apenas me perguntou se estava pronto ao que respondi afirmativamente. Creio que nem me olhou. Após “checar” a prontidão operacional dos meios aéreos, voltou-se para um dos seus oficiais de confiança, na circunstância o Comandante Patrício dos fuzileiros navais, e deu ordem de partir imediatamente.
Estávamos já a meio da tarde!
Era a minha primeira missão em situação de maior risco.
Corri para o Agrupamento, vesti o camuflado, recolhi o material de reserva e “voei” para a Base Aérea nº 12 em Bissalanca.
O Jeep “Wilis” vencia bem a estrada cheia de buracos até ao aeroporto e o meu condutor, o Fernando, de etnia papel, dava largas à sua perícia e predilecção pela velocidade.
Embarcámos num helicóptero ao lado do qual e um pouco à frente voáva um helicanhão com funções de protecção. Faziam voo rasante e a grande velocidade a fim de evitar os mísseis, ao contrário dos aviões que voavam a grandes altitudes e aterravam em hélice sobre a vertical do lugar.
Percebi então o que eram as zonas libertadas pelo PAIGC: quando as populações estavam em zonas amigas limitavam-se a ver evoluir os helis, mas quando sobrevoávamos zonas libertadas, as mulheres (não me lembro de ver homens) com os filhos às costas e as bicoatas na cabeça, mal se apercebiam da aproximação dos aéreos, fugiam e desapareciam na mata ou caíam desajeitadamente.
Chegámos a Cacine e embarcámos num navio patrulha, que habitualmente ali estava estacionado, subimos o rio até à foz de um afluente que dava acesso a Jemberém, seguimos depois num bote dos fuzileiros (zebro), sempre acompanhados de escolta de fuzos em botes até ao local de abicagem que servia Jemberém.
Apeámos numa praia de lodo onde, uns metros à frente, nos aguardavam as tropas da guarnição. O Comandante Patrício, de farda branca, fez-se transportar às costas de um nativo! Indicou-me a mesma receita, que eu recusei, enterrando-me até onde o lodo quiz.
Segui-o e fotografei-o, ciente de que estava a fazer um registo histórico de uma imagem de guerra insólita nos confins da Guiné!
Os cerca de dois km até ao aquartelamento foram feitos em viaturas, mas com equipas de picadores que faziam a picagem da picada pondo-nos, assim, a coberto das minas, isto apesar de terem acabado de fazer aquele percurso!
Fomos recebidos por homens desesperados, ansiosos por nos contarem os dias vividos em completo isolamento, sem comunicações e debaixo de flagelações contínuas.
Eram vítimas da estratégia de ocupação do Sul pelo PAIGC. As circunstâncias em que foram apoiados por Bissau, numa missão com riscos, quebrando a sua solidão e partilhando os seus riscos, foi para aqueles homens tão importante como o apoio que lhes foi prestado.
Ao fim de cerca de uma hora de partilha de informações, emoções e sentimentos, fomos avisados pela guarda montada ao local de abicagem, que nos restava pouco tempo para aproveitarmos o fio de água que com a maré vazia se ia extinguindo. Partimos e foi com espanto que constatei que o braço de rio do Cacine, tão grande como qualquer afluente do Douro, estava a desaparecer!
Fizemos o percurso de regresso em contra-relógio à máxima velocidade possível e quando, finalmente, voávamos de heli com o helicanhão ao lado a caminho de Bissau, senti-me confortavelmente a caminho de casa. O risco menor ou mais escondido já constituía uma sensação extremamente agradável.
7. Outras Missões
Como Oficial de Operações de Transmissões desempenhei várias outras missões no interior do território, Olossato, Cufar, Nova Lamego, Bolama etc. A primeira foi uma deslocação a Olossato com algum material de apoio à unidade local.
Fui numa DORNIER com o Major Infª Pires Afonso que ia em missão da 4ªRep do QG do CTIG (Quartel-General do Comando Territorial Independente da Guiné) levando também diverso material de apoio logístico, ou seja, o avião ia bastante carregado para o que também contribuía o peso deste meu camarada.
Recordo que era costume passar-se à vertical do aquartelamento para avisar da nossa chegada e, assim, nos irem esperar na pista de aterragem. Assim foi, desta vez. Mas, quando deixámos de ver o aquartelamento, qual não foi o meu espanto, a aeronave baixou subitamente e aterrou na primeira picada que surgiu.
Foi um grande susto e só depois de me apear é que me foi explicado que aquele risco no chão (picada) era afinal o aeroporto daquele lugar escondido entre Bissorã e Farim!
Numa ida a Cufar, acompanhando o Comandante, para apoio de exercícios conjuntos de tropas páraquedistas e de comandos, recordo a viagem num avião cargueiro Nord-Atlas cuja aterragem foi um difícil e incómodo exercício de descida em helicóide sobre a pista para evitar a exposição ao fogo ou mísseis IN. O piloto, por vezes, quase deixava cair o aparelho, mantendo a trajectória circular ou helicoidal, para ser mais preciso.
Numa das saídas para o Sul em que visitei vários aquartelamentos, como o heli voáva a muito baixa altitude, era possível tirar fotos, algumas das quais muito significativas.
Desde aldeias abandonadas com algumas habitações destruídas!
Até aldeias recentemente incendiadas!
Com o heli a voar baixo era excitante fazer rasantes às copas das árvores e assistir à debandada dos bandos de macacos, assustados com o ruído do motor.
Esta era uma zona que englobava ainda Cufar, Catió e Cacine e que constituía uma espécie de ilha sob nosso controlo, ou melhor, cuja população era controlada pelas NT, em volta da qual se situavam áreas cujas pop’s eram controladas “psicologicamente” pelo IN, conforme linguagem oficial.
Tenho para mim que estas áreas já não tinham populações. Com efeito, as áreas envolventes destas descritas estavam assinaladas no Mapa do Comando-Chefe como áreas desabitadas.
O que se acabou de dizer percebe-se melhor pela consulta do Mapa da Guiné em Anexo, onde se pode ver a “ilha” a cor azul rodeada das áreas a vermelho, ocupadas pelo PAIGC.
Foi ainda no Sul que, depois de me ter despedido do Cap Bicho de Cavalaria, que andava de padiola com uma perna partida, que presenciei esta cena: uma figura estranha de um africano com um porte altivo e com um brinco na orelha saía de um aldeia a caminho de outra levando uma sacola a tiracolo.
Perguntei ao condutor que figura era aquela. Foi-me respondido que era um “arrebenta”. E foi-me explicado que era convidado pelas aldeias para ir tirar o cabaço (desflorar) às bajudas (virgens). Espantoso hem! Para um europeu, a Guiné era um manancial de surpresas.
Até àquele dia eu só conhecia a cultura antagónica desta, digamos que mais europeia, que era a do nativo que tinha de provar, após a consumação do casamento que a noiva estava virgem, vindo então à saída da tabanca a exibir um pano manchado de sangue. Vim depois a saber que nestes tempos já substituiam o sangue por tinta vermelha!
Em Bolama, também havia IAO e, por isso, ia lá com alguma frequência e foi lá que num pôr-do-sol presenciei uma dança africana em que me deixei envolver num ambiente de magia e, talvez, contraditoriamente de grande solidão, pois embora acompanhado, senti-me tão distante do meu mundo e também daquele que tinha pela frente e que agia como se eu não estivésse ali! Vivi várias vezes este sentimento de ver e não ser visto, tal era o alheamento das populações quando se entregavam aos seus rituais.
Mas, antes desta dança presenciei uma outra muito colorida e mais alegre, que alguém ao meu lado chamou de “manga de ronco no chão de Bolama”.
Os homens dançavam e as mulheres, cheias de graça, nas suas capulanas, assistiam sem participar.
Sempre o colorido das vestes, dos dançarinos com uma espécie de farda de Guarda Suíça do Vaticano, vê-se ainda na foto um deles junto da árvore, e das mulheres, do chão vermelho e da paleta de cores da vegetação e das aves.
Os cantares graves dos homens misturavam-se harmoniosamente com as respostas agudas das mulheres produzindo uma sonoridade tipicamente africana e extremamente agradável de ouvir.
Nalgumas destas deslocações era obrigatório ir de camuflado e tinha de se comparecer no aeroporto (terminal militar) muito cedo, aí pelas seis da manhã. Tomava-se o pequeno-almoço no bar de pilotos e recordo que aproveitava para comer uma papaia à colher, que era uma excelente refeição, porque as papaias que os pilotos traziam do interior eram muito melhores que as que havia em Bissau.
Era uma variante ao almoço de chá frio que, diariamente, tomava na Messe do CMO, tal era o calor que logo de manhã se fazia sentir.
Numa destas saídas para o interior (dizíamos para o mato), presenciei uma cerimónia de arrear da Bandeira num local que não recordo, mas do qual gravei imagem. Ao fim da tarde, perante formatura de tropas metropolitanas e de milícias e com a presença de civis em pose de respeito, foi-me dado viver um dos momentos mais tocantes da minha participação na guerra da Guiné.
A forte emoção que deixamos que nos invada é como um bálsamo para a alma. Em breves minutos o pensamento viaja pelo passado, pela nossa História e sentimos a força que nos transmite a memória de quem fez esta Nacão, voltamos ao presente e sentimos a grande responsabilidade de caminhar para o futuro, escrevendo agora nós as páginas da História que outros lerão e continuarão, e que queremos sempre honrar, mesmo que com
outra ideia de Portugal. Sentimentos como estes, vividos em comunhão, longe da pátria, são extremamente reconfortantes.
8. Outras Actividades
Em 1973, em data que não recordo, apareceu na Guiné o Ten Coronel João Silva Ramos, anterior Comandante do Agrupamento, que integrava uma equipa para o estudo da implantação da Televisão no território. Faziam parte dessa equipa o Secretário de Estado da Educação, o Presidente do Instituto de Tecnologias do Ensino e o Professor Lopes da Silva, da RTP e especialista em televisão.
Coube-me secretariar essa equipa, presidida pelo cmdt do Agr Tm, Ten-cor Mateus da Silva, e tive então oportunidade de trabalhar com o Ten-Cor Silva Ramos, o que não foi nada fácil, pois fi-lo em acumulação e em grande stresse durante cerca de oito dias.
No final o General Spínola ofereceu um jantar de despedida à equipa onde também estive presente. O convite foi extensivo à minha mulher, que recusou por não ter vestido.
Perto da hora do jantar, apareceu o Major Ayala Boto, Ajudante de Campo do General, a informar que a minha mulher tinha de estar presente e assim teve de ser. E foi muito bonita e bem vestida. Deste jantar recordo que o General discorreu pausadamente sobre diversos temas, não dando hipóteses a ninguém de o interromper.
Pareceu-me que ele se esqueceu que estava acompanhado e foi preciso ser alertado pela esposa para deixar também falar o Secretário de Estado que tentava esforçadamente intervir. Outra nota que recordo foi o vinho tinto servido à temperatura ambiente, o que me levou à opção da água fresca.
Acabado o jantar foram os homens convidados a passar à sala de fumo, mas reparei que as pessoas faziam bicha para cumprimentar a esposa do General. Não percebi o que se passava e foi a minha mulher que me explicou que se tratava de agradecer o jantar! Fui o último da bicha.
Tive uma única oportunidade de fazer um projecto de electricidade de um prédio de 10 apartamentos, cujo projecto de construção era da autoria do Ten-Cor Mateus da Silva e que não se concretizou por causa das condições cada vez mais difíceis da situação militar. Foi a minha primeira experiência na área técnica e, por isso, teve alguma importância.
A actividade de tempos livres que mais me retemperava, psicológica e fisicamente, eram as futebolincas no BInt (Batalhão de Intendência), depois do pôr-do-sol, nas quais participavam os respectivos comandantes. Jamais me passaria pela cabeça, quando desembarquei em Bissau meio sufocado, que conseguiria jogar futebol na Guiné, onde era normal trazer a camisa encharcada de suor sem nada fazer.
A propósito de nada fazer e, ao correr da pena, nesta escrita solta de memórias e de memória, recordo a cena que presenciei quando me dirigia para a Messe de Sta Luzia com o Cap Coutinho e vimos dois africanos a pintar com cal o lancil do passeio sob o sol de meio-dia!
O pincel era colocado no bordo superior do passeio e a mão caía por gravidade até à base.
Seguia-se uma merecida pausa de contemplação do trabalho já realizado.
Diz o Cap Coutinho: – vês, aqui há três ritmos, devagar, devagarinho e mesmo parado!
A exploração da machamba, que “herdei” do Cap Coutinho, da qual retirávamos géneros para reforço das refeições, passou a dada altura a ser feita com mais meios humanos porque a Intendência (BInt) se propôs comprar parte da produção e pagar em outros géneros (carne e conservas).
Então tive de admitir dois trabalhadores africanos e, qual não foi o meu espanto, quando ao preencher uma ficha de inscrição, um deles disse chamar-se Passatempo Cá. Foi-me então explicado que este homem, questionado pelo Cap Cordeiro sobre o seu nome, julgou que lhe estavam a perguntar o que andava a fazer no quartel e lhe respondeu: -passa tempo cá, capitão. Daí o ter-lhe ficado este nome, porque outro não apresentou!
Apenas uma vez fui à caça (não grossa) para a região de Mansoa, a Norte de Bissau, onde já não era muito saudável ir sem escolta. Foi o Primeiro-sargento Neto Vasco que organizou a expedição. Tínhamos de partir cedo como mandam as boas práticas deste desporto, mas não tão cedo que ainda nos cruzássemos com os guerrilheiros que vinham dormir com as mulheres à povoação e que saíam a horas às quais também não tivéssem problemas com as NT!!
Este apontamento ilustra bem o ambiente que se vivia em finais de 1973 e princípio de 1974. As NT permaneciam a maior parte do tempo dentro dos aquartelamentos, evitando os contactos. Raramente já faziam as operações de controlo do terreno da sua responsabilidade. Aliás, o próprio Comando-Chefe apontava já para cerca de um terço da área povoada ocupada pelo PAIGC. Ver Mapa em Anexo.
Também só uma vez fui à pesca e só pesquei um peixe, que era o mais frequente naquelas águas: um bagre que apresentava uma barbatana dorsal escondida e que armava cortando a mão quando se pegásse nele. Tal como me ensinaram, tratei de fazer saltar a barbatana e de lha cortar antes de o manipular.
Em termos de experiências, aquelas das quais mais gostava não as repeti, por razões sobretudo de segurança. E assim, também só fui uma vez à praia! Não há praia em Bissau; tivemos de fazer uma excursão a Quinhamel, levar armas e rádios (E/R Storno CQP- 692, portátil a dorso ou em viatura) que nos permitiu manter a ligação com o Quartel.
Recordo que junto da praia havia uma grande mata de eucaliptos de grande porte, árvore que não voltei a ver na Guiné e que, suponho, foi ali plantada para dar uma generosa zona de sombra. No caminho vi pela primeira vez as “bajudas”, chamadas “teenagers” na Europa. As bajudas foram, em África, mais desinibidas do que na Europa, pois já faziam topless!
Também, no Biombo, visitei a tabanca de um tecelão, que apreciei pela arte e pelo ambiente mágico em que ele trabalhava.
O conjunto de tabancas desta zona era cercado por muros de terra encimados por sebes que lhe davam um aspecto de condomínio fechado, mas aqui para proteger das cobras e não de mãos alheias como na Europa. Estas tabancas foram as mais bem arranjadas e asseadas que tive ocasião de ver na Guiné.
Como curiosidade, registo o facto de o tecelão estar muito concentrado no seu trabalho e nunca sorrir, mesmo quando interpelado, ao contrário da mulher que apareceu com um filho ao colo e que fez questão de que lhe tirássemos uma fotografia. O tecelão não gostou desta intenção, mas quando me retirava ela chamou e posou tranquilamente para a objectiva.
Mas a actividade de tempos livres que mais me motivou foi a de professor de matemática no Liceu Nacional Honório Barreto.
Os alunos de 5º ano constituiam uma turma de rapazes e raparigas, pretos e brancos, alguns já adultos. A sua motivação e dedicação trazia-me responsabilidades acrescidas, mas bem recompensadas no interesse que punham nas aulas. Só que esta benesse já me chegou tarde, a poucos mêses do 25 de Abril.
9. A Revista “ZOE”
As condições de vida no território, a insegurança provocada pelas acções de guerrilha cada vez de maior intensidade, a solidão geral, inclusivé em Bissau, onde não havia nenhum entretenimento e de onde não era possível sair mais de 50 km, ou seja, até ao Cumeré, sem escolta, convidava à reflexão, à escrita e ao debate de ideias.
Assim se reanimou uma revista que existia no AGR Tm, a “ZOE”, que em código dos ZZ significa: transmita a sua mensagem que eu a farei seguir. Foi o Capitão António Pena (1970/72) o autor deste baptismo. Como Adjunto do Comando das Transmissões, e por inerência, assumi as funções de director desta revista.
Com colaborações de pessoal do interior que rapidamente se mobilizou nesse sentido e com a feliz coincidência de termos entre nós o pintor António Carmo (soldado radiotelegrafista), um jornalista, José Manuel Barroso, um futuro escritor, Carlos Matos Gomes (que escreve sob pseudónimo de Carlos Vale Ferraz) e com excelentes colaborações do próprio Comandante Ten Cor Mateus da Silva, do Major Cunha Lima, Cap Coutinho, Cap Duran Clemente, meu camarada de curso que estava no Batalhão de Intendência.
A revista contou também com a colaboração de Oficiais e Sargentos Milicianos e de tantos militares anónimos de Bissau (poeta-soldado António Rocha e furriel Jales de Oliveira, hoje poeta e contista consagrado, de Mondim de Basto) e do interior, que geraram belos poemas de guerra e de protesto e de simples estados de alma, foi possível produzir uma revista de excelente qualidade gráfica e cultural que chegou a merecer um louvor escrito do Comando-Chefe por delegação do General Spínola.
A Guiné, cuja posição geográfica permite perceber que foi ponto de confluência das mais variadas tribos africanas, com a sua riqueza étnica, religiosa e artística, constituiu fonte de inspiração para algumas iniciativas jornalísticas.
Sempre nos espantava haver, num território que corresponde à terça parte de Portugal, quinze etnias tão diferentes, desde os Fulas, islâmicos, altos e magros, comerciantes e cultos, com mulheres que eram autênticas estátuas negras, até aos Balantas, animistas, cultores de irãs, baixos e gordos, lavradores de arrozais (é famosa a pá do balanta com a qual ele trabalha a terra para não a misturar com as camadas salgadas mais profundas).
Um destaque ainda para os Nalús, pequena etnia situada a Sul, cuja expressão artística atingiu o auge com o senhor Mujê de Cacine, cuja estatuária era vendida em bazares de Paris, mas ignorada em Portugal.
Esta riqueza cultural mereceu a atenção da ZOE num artigo da autoria do Ten Cor Mateus da Silva que entrevistou o Major Carlos Fabião, profundo conhecedor desta matéria e ilustrado pelo pintor António Carmo.
Recordo que o Major Carlos Fabião serviu de intérprete na entrevista ao Nalú Carimo que explicou o significado das peças de arte, o seu uso nos diversos rituais, especialmente o do fanado Nalú, uma espécie de iniciação sexual.
10. Sinais do 25 de Abril
Spínola deixou a Guiné em Agosto de 1973, após 5 anos de Comando, sabendo que a guerra estava perdida e depois de Marcello Caetano lhe ter proibido os contactos com o Presidente Senghor do Senegal. No mesmo mês foi publicado o livro “Os Congressos do Povo da Guiné”, por Manuel Belchior. Extraordinária iniciativa para captar o apoio das populações, como mandam os bons manuais da guerrilha!
Um ano antes e também de sua iniciativa era publicada a “Prospectiva para o Desenvolvimento Económico e Social da Guiné” da Junta de Investigações do Ultramar, uma tentativa de identificar os sectores de desenvolvimento com vista à obtenção de indicadores económicos que, comparados com os das antigas colónias europeias, mostrassem as vantagens da solução federativa para a Guiné.
Foi a política de “Por uma Guiné Melhor”.
Para completar o quadro, lançou bem concebidas campanhas de acção psicológica que iam confundindo as populações.
Em suma, o General Spínola, além de ter sido um grande comandante militar, conduziu uma política inteligente em todos os aspectos e abriu o caminho a uma solução politicamente negociada e, assim, ao próprio 25 de Abril.
Uma questão que é determinante para a análise histórica e que hoje se deverá colocar é: Quem conquistou as populações? O PAIGC ou as NT? As elites das sociedades tradicionais, tribais, aderiram aos Congressos do Povo porque não podiam recusar ou porque acreditaram?
Ou pura e simplesmente jogaram com ambas as partes, cientes de que, como se diz na citada obra, sabiam que contra o colonialista branco tinham o apoio da Europa e da China, mas contra o colonialista preto não tinham o apoio de ninguém?! Há 30 anos isto era politicamente incorrecto, hoje é matéria de reflexão.
Reflexão que ajuda a compreender as forças em presença neste ambiente de guerra, mas que não permite supor que outra solução mais justa se poderia ter adoptado.
Em finais de Setembro de 1973, chegou à Guiné o General Bettencourt Rodrigues, sabendo que Marcello Caetano tinha escrito na sua carta de comando que devia resistir até à exaustão dos meios, mas ignorando que o Movimento dos Capitães (MOCAP) estava já irremediavelmente lançado.
Em finais de Dezembro de 1973, chega o Ten-Coronel Ataíde Banazol, à frente do seu Batalhão, que em Lisboa se tinha recusado a embarcar e que o iria fazer compulsivamente e de forma fraccionada.
A que situação se chegou!
Em Fevereiro de 1974, este oficial convocou-me para uma reunião em Nhacra, a 30 km de Bissau. Acompanharam-me o Capitão Matos Gomes, hoje o escritor de pseudónimo Carlos Vale Ferraz, e o Capitão José Manuel Barroso, à data jornalista do jornal “República” e depois do Diário de Notícias e do Primeiro de Janeiro.
Ofereceu-nos a possibilidade de efectuarmos um golpe em Bissau, tomando o poder civil e militar, quando o seu Batalhão aqui se concentrasse, oito dias depois, a caminho de Bambadinca. Far-se-ia o cerco do Comando-Chefe, na Amura, à hora do “brieffing” matinal. Disse-nos que o Otelo estava ao corrente desta iniciativa.
A coragem nem sempre acompanha o bom senso e, por respeito, e apesar do entusiasmo dos meus acompanhantes, não dei logo uma resposta e pedi dois dias para pensar.
Quando voltei e lhe disse que era uma aventura sem hipótese de sucesso e expliquei porquê, não gostou e, de imediato, anunciou a intenção de, mais tarde, agir por conta própria, sem coordenação com o MOCAP.
E se bem o pensou melhor (ou pior), o fez! Em Março de 1974 foi distribuído no território um panfleto em nome do Movimento de Resistência das Forças Armadas, convidando para um programa de retracção do dispositivo a efectuar entre Maio e Junho.
Ainda em Março de 1974, a 5ª Rep/CCFAG publicava uns “Breves Apontamentos sobre a Guiné Portuguesa”, um bom trabalho de Estado-maior sobre a Geografia, a População (etnias, crenças), Organização Político-Administrativa, Os Congressos do Povo, a Economia, a Saúde, a Educação, Os Meios de Comunicação e a Participação das FFAA no esforço de Desenvolvimento. Bom trabalho, mas quem o teria lido?
O MFA na Guiné com o seu QG no AGR Tm estava preparado. As tropas metropolitanas estavam pelos cabelos. Tacitamente, já poucos encontros havia com o PAIGC, evitava-se criar condições para o desastre militar.
A 5 de Março de 1974 o MFA na sua reunião de Cascais apontava para caminhos já irreversíveis.
Vivia-se então um ambiente de vésperas.
Em 23 de Abril de 1974, o MFA na Guiné decidiu intervir em caso de insucesso em Lisboa, conforme combinado e a pedido do Otelo, mas admitiu a hipótese de também o fazer em caso de sucesso. Na Guiné, não se podia protelar o reconhecimento da independência e, muito menos, jogar o jogo da solução federativa, após consulta às populações.
Contudo, o argumento final que convenceu os operacionais a intervir foi o facto de o Comandante-Chefe não só não ter reconhecido o MFA em 25 de Abril, ao contrário do Comodoro Comandante Marítimo, mas também porque deu instruções à PIDE para seguir os movimentos dos oficiais do MFA.
Foi o capitão Oliveira Dias (Marinho) quem fez a escuta desta comunicação e me avisou de imediato do risco que corríamos.
A tomada do poder foi pacífica, respeitosa mas dramática. Refiro que íamos todos desarmados (que eu saiba) pois queríamos tratar esta questão com a máxima dignidade.
11. O AGR Tm e o 25 de Abril
O AGR Tm, os seus militares e o próprio quartel, tiveram um papel importante na criação do MOCAP (Movimento dos Capitães) que havia de dar lugar ao MFA (Movimento das Forças Armadas).
Foi na sua Sala de Sargentos que se realizou a primeira reunião clandestina de Capitães (com conhecimento do Comandante) onde, pela primeira vez, se falou na necessidade de uma revolução armada contra o poder então vigente.
O TCor Otelo Saraiva de Carvalho já se referiu a esta minha intervenção como a mais emocionante das reuniões preparatórias do 25 de Abril.
Assim, em Agosto de 1973, lá se reuniram cerca de 40 Capitães do quadro permanente vindos de todo o território, dando início a um processo de contestações (Congresso dos Combatentes) e de reivindicações (DL Sá Viana Rebelo) numa determinante caminhada até ao 25 de Abril.
Foi do AGR Tm que se destacaram os oficiais que assumiram as mais altas responsabilidades após o 25 de Abril e foi com tropas do AGR Tm que se cobriu inicialmente a operação de tomada do poder em Bissau – o cerco do Comando-Chefe das Forças Armadas no Forte da Amura – até ao aparecimento de forças paraquedistas, como estava planeado, mas que tardaram a chegar.
Seguir-se-ia o desenrolar de um processo de descolonização, que considero exemplar e, no qual, uma vez mais participaram activamente muitos Oficiais e Sargentos de transmissões.
Pessoalmente corri mais riscos depois do 25 de Abril, sobretudo quando tive de me deslocar ao Senegal e à fronteira com a Rep Guiné Conakri para resolver os ultimatos que forças locais do PAICG colocaram às nossas unidades em Pirada (no Norte) e em Buruntuma (no Leste).
Quero destacar aqui a coragem e a capacidade de decisão do Ten Coronel Mateus da Silva, que integrou o grupo dos oficiais que assumiram o poder e tomou as primeiras e difíceis decisões do MFA em Bissau. Designado pelo MFA em Bissau como Encarregado de Governo. Deixámos as funções de Comandante-Chefe ao Comodoro Almeida Brandão.
O Brigadeiro Carlos Fabião, designado pelo General Spínola para novo Encarregado de Governo e Comandante-Chefe, chegou à Guiné em 7 de Maio de 1974, com instruções concordantes com a estratégia do General.
Porém, inteligente e sensato, rapidamente percebeu e perfilhou as razões do MFA/Guiné e liderou com grande coragem e sabedoria o processo que conduziu a uma descolonização exemplar, reconhecimento da independência e transferência de poderes.
Foi necessário passarem 30 anos para que o Estado português reconhecesse este alto mérito e levásse o Presidente da República a conceder-lhe a Ordem da Liberdade em 18 de Dezembro de 2004, já doente em estado de grande debilidade física.
Sendo a Guiné já independente, “de jure”, (24 de Setembro de 1973 em Madina do Boé), reconhecida por mais países (82) do aqueles com os quais Portugal mantinha relações diplomáticas, a que se seguiu a aprovação pela ONU de uma Resolução considerando-nos tropas de ocupação e convidando Portugal a abandonar o território, a independência “de facto” era o caminho do Direito Internacional e da História da emancipação dos povos.
E assim se cumpriu a História com dignidade e honra para Portugal!
12. À Margem da Guerra
Por vezes alguém se lembra de um episódio, ou anedota, passada na Guiné e que, pela sua graça, aqui deixo alguns registos.
Um Comandante de uma Unidade de Artilharia, o Major Gaspar enviou a seguinte mensagem Imediato para o Comando-Chefe:
-Info impossível cumprir missão por falta de mat rádio.
-Solicito envio urgente de meios rádio.
Resposta do Com-Chefe:
-Ref v/ msg info não haver rádios disponíveis;
-Mais info Teixeira Pinto pacificou Guiné sem rádios.
Réplica do Major Gaspar com msg Relâmpago:
-Ref v/ msg solicito envio urgente de Teixeira Pinto.
Há quem atribua o protagonismo deste episódio ao Ten-Coronel Sanches da Gama, Comandante das Tm e ao Major Gaspar, de Artilharia, ambos muito conhecidos pelo seu bom humor.
O Major Gaspar, aliás, viria a tornar-se num mito, pelas deliciosas histórias que se contam da sua autoria. Relatarei apenas mais duas: quando um dia ao aproximar-se um heli com o General Spínola a caminho da sede do CAOP ele enviou mensagem ao escalão superior dizendo: Info Vexa que Sexa passou na mexa! Conta-se que a partir daqui foi proibido o uso destes termos em mensagens.
Era proverbial a aversão do major Gaspar aos papéis e à burocracia. Dizia-se que dependurava todas as notas vindas do QG/CTIG em cordões por cima da sua mesa de trabalho. E, quando vinha alguém de Bissau e indagava sobre um processo qualquer, ele, passando a mão pela nota dependurada e abanando-a, respondia: – está pendente!
À medida que o tempo ia passando, as pessoas iam ficando “apanhadas do clima”. Era o efeito do cacimbo em terra de extremos!
A propósito do passar do tempo, era prática corrente encher o calendário de cruzes à medida que os dias iam passando, e os que não confessavam esta prática eram traídos quando sabiam sempre os dias certos que estavam em falta para o regresso.
Mas, a partir de certa altura, quando se constatou que na messe se comia sempre uma banana de sobremesa (durante o ano de 1973 foi sempre assim), então começaram a aparecer os que mediam o tempo de comissão pelos km de bananas que tinham comido, ou o tempo em falta pelos km de bananas que faltava comer! Coisas de apanhados! Ficou célebre o dito dos que iam acabando a sua comissão: -está na mala!
Apanhados e não, depois das refeições, nomeadamente à noite, saboreavamos um bom velho uísque, Martins20, Swing, Old Parr, com água “Perrier” ou um bom brandy Napoleón ou Curvoisier ou uma boa aguardente Carvalho Ribeiro & Ferreira. Não fazíamos a coisa por menos porque estas excelentes bebidas eram baratas. Os mais modernaços iam para a coca-cola, bebida proibida em Portugal antes da revolução! E assim se descobriu a Cuba-Livre que, na Guiné, era a mistura da coca-cola com uísque.
E depois, bom, depois sempre havia mais inspiração para encher de versos um aerograma do SPM (Serviço Postal Militar) e mandá-lo de graça para a namorada, para a família ou para a ZOE. Esta foi uma das boas iniciativas que muito nos facilitaram a vida. Mas havia também outras iniciativas do MNF (Movimento Nacional Feminino), como a oferta de milhares de livros (Colecção RTP de 60 títulos) de autores variados, inclusive bons romances de autores clássicos e também rádios de AM, que só recebiam as frequências da EN (Emissora Nacional) e do ERG (Emissor Regional da Guiné), evitando assim que se ouvisse a BBC ou as Rádios do Senegal e da Rep Guiné Conakri.
E, a propósito de livros, recordo a excitação com que o Cap Matos Gomes regressou do Continente, em finais de 1973, com uma pilha de livros da publicação “Por uma Democracia Anticapitalista”, de Mário Sottomayor Cardia, conhecida figura da oposição. Mas o melhor foi o cuidado com que o Matos Gomes vendia o livro a preço de custo, esclarecendo que o mesmo só defendia a social-democracia e não o socialismo, como ele gostaria que fosse, mas do mal, o menos. Sempre era um começo! E foi, talvez este texto que, de forma mais politizada, mostrou a muitos Capitães os defeitos e os males da ditadura em contraponto com as vantagens da democracia.
Mas justo é dizê-lo, também os “Textos Políticos” de Amílcar Cabral foram um bom contributo. Era reconfortante ler “Os nossos povos fazem a distinção entre o governo colonial fascista e o povo de Portugal: não lutamos contra o povo português”. Ou então, “E que ninguém se espante se ousamos afirmar que não nos sentimos orgulhosos pelo facto de em cada dia, e por força das circunstâncias criadas pelo governo português, sucumbirem ingloriamente grande número de jovens portugueses, sob o fogo dos nossos combatentes”.
Ou ainda para melhor entendermos o povo da Guiné “uma coisa é lutar num meio onde todos os homens sabem muito bem o que são a chuva, os relâmpagos, o trovão, o tornado, outra coisa é lutar num meio onde os fenómenos naturais podem ser interpretados como o resultado da vontade dos espíritos”.
Pois, dos cerca de 487.000 habitantes, cerca de 280.000 eram animistas, praticavam o culto dos irãs que encarnam o espírito dos antepassados. Só havia 10% de cristãos, mais evangélicos do que católicos. Os islamizados constituiam os restantes 160.000 e eram os mais fiéis à política do governo português (sobretudo os Fulas). E foram estes que criaram mais problemas depois do 25 de Abril, provavelmente numa tentativa de captar as simpatias do PAIGC.
13. Impressões e Emoções à Distância de 30 Anos
Volvidos 30 anos, a memória, que já arrumou definitivamente a maior parte dos acontecimentos que marcaram dois intensos anos da minha vida, mantém ainda bem vivos momentos e emoções que ainda hoje me sensibilizam.
Enquanto Oficial da Arma de Transmissões senti sempre, em todos os locais onde me desloquei em serviço (e continuei a fazê-lo mesmo depois dos mísseis), o respeito dos meus camaradas e o seu reconhecimento do apoio de vital utilidade que o Agr Tm prestava, apesar das limitações de meios que eram, aliás, extensivas ao restante armamento.
Ao contrário do que viria a assistir mais tarde em Portugal, onde era prática demasiado corrente justificar o insucesso de uma operação com falhas de transmissões, na guerra da Guiné, salvo situações acidentais, sempre foi reconhecido o funcionamento das transmissões, quer fosse em operações de reconhecimento, de combate, de apoio aéreo ou de simples contacto entre unidades.
Enquanto cidadão esclarecido e responsável, sofri por ir participar na guerra que não queria, que sabia perdida, não tanto por fraqueza no campo de batalha, mas, outrossim, pelas razões históricas e naturais da vida dos povos e das nações.
Podia ter optado, como muitos camaradas e outros portugueses, pela deserção. Pertencem ao meu curso de admissão à Academia Militar quase todos os Tenentes que desertaram em 1973 para a Suécia (do meu círculo mais restrito de amigos), opção que respeitei como eles respeitaram a minha.
Enquanto cidadão, senti sempre o maior respeito pelos guerrilheiros do PAIGC.
Enquanto oficial de transmissões, senti sempre o apelo da mais forte solidariedade com os meus camaradas que, no mato, submetidos aos maiores sacrifícios, desempenhavam as suas missões, em condições de extrema precariedade e quantas vezes com sacrifício da própria vida.
No entanto, sentindo orgulho na minha pequena participação na História da Guerra e da Independência da Guiné, pergunto-me muitas vezes como nos enganámos com muitos daqueles com quem negociámos a transferência de poderes!
Seguiu-se a luta pelo poder, a corrupção e as matanças tribais! Não era nada que não suspeitássemos, desde a morte de Amílcar Cabral em 20 de Janeiro de 1973.
Mas esta é já outra História que aqui não tem cabimento.
Trinta anos depois, a Guiné, está mais pobre, mais corrupta e continua insegura.
São os insondáveis desígnios da História!
Lisboa, 25 de Abril de 2005
Jorge Sales Golias
Tenente-Coronel
Extraordinário artigo do coronel Jorge Golias. Parabéns!