Para que a memória não se apague.

Eu pertencia àquele que foi na realidade o 3.º curso de entrada para as Transmissões (entrada de 1960) mas acabou por ser considerado, em relação às saídas, o segundo. O Carvalho Gomes e o Cunha Lima tinham entrado em 1958. Perderam um ano, não por culpa própria, mas por motivos administrativos, tendo vindo a juntar-se ao segundo Curso, o de Cardoso Figueira, Saraiva Mendes, Frade, Louro, Cruzinha Soares, Cordeiro (“Verde”), Alcide d’Oliveira, Amaral Marques, Subtil e Bento Soares reganhando a sua antiguidade depois do curso terminado. (ver no site artigo “O despontar de Alunos de Transmissões na Academia Militar”)

Estes dois cursos já se encontravam na sede da Academia Militar em Gomes Freire, quando, no Outono de 1962, o nosso curso, que era constituído por Cruz Fernandes, Rodrigo Leitão, Maia de Freitas, Daniel Ferreira, Viegas Damásio, Teles Grilo, Silva dos Santos, Paes Mendes, Silva Fidalgo, Morais Castro e Lopes Malheiro, transitou do aquartelamento da Amadora para se lhes juntar. Aí fomos submetidos a uma praxe, cujo guião foi idealizado pelo Alcide d’Oliveira. O que se passou nessa noite no hall de entrada que dá acesso à sala de jogos, ao refeitório e, pela escada, à Sala de Alunos no andar superior, foi um autêntico ritual de iniciação, uma espécie de banhos lustrais que prepararam o meu curso para a sua integração na Nobre Arma, que havia sido criada para nos acolher e onde nos íamos irmanar aos camaradas do curso anterior.

Se se tiver presente que a materialização do Bastão (símbolo de comando) e do Papiro (alicerce da memória) se materializaram nesse dia, mais se justifica considerar o ritual de entrada do meu curso o acto da Fundação.

A história que representámos centrava-se na crítica às atitudes de certos oficiais, nossos instrutores, comandante do Corpo de Alunos incluído, e à alimentação, que de um modo geral detestávamos. O texto foi representado sob a forma Jograis, talvez inspirado num evento cultural que nesse ano tinha feito furor. A apresentação dos Jograis de São Paulo no Teatro Nacional de D. Maria II de um programa dedicado a Fernando Pessoa.

O nosso texto como Jograis era combinado com uma encenação espetacular de um aluno da Força Aérea, de alcunha o Macau, que, calçando botas altas e empunhando um pingalim, imitou os vários tiques de oficiais e do Comandante do Corpo de Alunos, na palavra e no gesto e fez rir à gargalhada toda a assistência, incluindo os próprios caricaturados. A crítica estendia-se à forma de cozinhar um cabrito especial, do qual resultavam para servir, apenas ossos e plim plim, que os jograis (nós) repetíam em coro e verso.

Para complementar a encenação, não foi descurada a nossa indumentária, a qual consistia no seguinte: farda da ordem, capote virado do avesso, forro á vista e gravata em forma de laço. Para complemento da descrição incorporo uma foto das que, da cerimónia, tirou o Sr. Apolónio, o fotógrafo da AM, que representa os jograis em plena atividade.

Para que tudo não se assemelhasse demasiado a uma revista do Parque Mayer, os mentores da peça (malta do primeiro e do segundo cursos, possivelmente autorizada pelo Marechal da Praxe, que ao tempo era o hoje General Góis Ferreira), determinaram que o meu curso tinha de criar também o Grito da Arma, tal como todas as outras Armas já tinham.

O meu curso, constituído por alunos vindos das escolas e dos liceus, nunca tinha passado pelas Transmissões, não fazendo a mínima ideia daquilo que para as Transmissões poderia ser condensado no seu grito. Alguém, com habilidade para se descartar da incumbência, lembrou que eu, que vinha das Transmissões, é que devia ser encarregue disso.

Para os mais novos, acrescento que, de facto, ascendi à Academia Militar a partir de sargento de Transmissões, tinha antes percorrido algumas das unidades de engenharia, participado em manobras da Divisão NATO em Santa Margarida, tirado o curso de material e segurança cripto, na Chefia do Reconhecimento das Transmissões (CHERET), que era na altura o supra-sumo das cifras e da segurança, além de aí ter prestado serviço por um período considerável.

Devo esclarecer que a segurança e os sistemas de cifra que se aprendiam na CHERET, eram desdenhadas, nesse tempo, pela maioria dos oficiais de transmissões. Eu, porém, tinha percebido a sua importância e, com o curso ainda fresco, a segurança era assunto de grande relevo para mim. Sempre pugnei para que as Transmissões absorvessem as cifras e a segurança, conseguindo um passo importante nesse sentido com a implementação do SITEP (Sistema Integrado de Transmissões do Exército), do qual resultou a transição da comutação analógica para a digital, a caminho de incorporar os algoritmos das cifras nos próprios equipamentos. A inclusão no Grito de serem Transmissões detentoras do segredo funcionou como um premonição do que viria a acontecer.

Daí “O Segredo, Guardamos

O múnus das Transmissões é informar, seja no campo particular de aplicação militar, seja na actividade geral da humanidade. No campo militar, as Transmissões têm ainda a capacidade encurtar a distância que vai do pensamento ao acto, isto é, da decisão de comando até ao acto de cumprir.

Daí “ O Mundo, Informamos”

A vanguarda, não é só a vanguarda na táctica militar em que se posicionam as Transmissões, mas essencialmente a vanguarda tecnológica, referência que ainda hoje me enche de orgulho porque, meio século passado, as Transmissões e o seu pessoal continuam a reafirmar, a cada momento, as virtudes invocadas no Grito.

Daí “ Na Vanguarda, avançamos”

O nosso primeiro contacto com a física electrónica e com as partículas tinha tido lugar na Amadora, nos primeiros anos do curso, de onde vínhamos. Outro assunto de relevo para quem iniciava uma carreira que se serviria das partículas elementares para cumprir a sua missão.

Daí “Alfa, Beta, radiações”

Acontece que, um pouco antes de entrar na Academia, tinha sido lançado pala URSS o Sputnik, Early Bird, primeiro engenho de transmissões posto em órbita pelo género humano, que emitia do espaço um som, bip, bip, à sua passagem em órbita por cima da Europa. Esse feito deixou-me profundas impressões.

Daí “Bip, Bip, Transmissões”

Aceitei a missão de escrever o Grito, convencido que seria um grito para uma noite e depois se esqueceria. Porém, persistiu até hoje. O que eu escrevi numa folha com linhas, que ainda recentemente encontrei entre as páginas da física da Academia, do Major de Eng.ª. Machado de Souza, “o Maravilhas”, nosso professor, tem a sequência seguida no texto e que, em resumo, reproduzo aqui.

Com o tempo, trocou-se a ordem, passou-se de beta a bravo, sem ter em conta que bravo não é uma radiação, e acrescentou-se, por iniciativa do saudoso General Pinto Correia, então Director da Arma, “As Transmissões, Mantemos“.

O sonho e a utopia que, como cadete de Transmissões me povoavam a mente, apraz-me vê-los continuados, geração após geração. Hoje, os sonhos de todos nós são um património sem preço que se configura em feitos, actos e símbolos, dos quais o bastão e os nomes aí inscritos constituem a nossa herança genética, que nos levam de qualquer geração, presente ou futura, às águas primordiais da nossa nascença.

Paradamonte, 20 de Maio de 2008. (revisão em Maio de 2024)
Manuel da Cruz Fernandes
Cor. Eng. Tm (Reforma)

1 comentário em “Como nasceu o Grito da Arma de Transmissões

  1. Uma bela contribuição para a legação à posteridade do que foram os primeiros anos vividos pelos oficiais eng.ºs electrotécnicos da então recém criada Arma de Transmissões, a par do emblema, das carcelas no uniforme nº 1, ainda fechado e, sobretudo no cerimonial do Jantar do Bastão, tudo tradições deixadas pelo 1ºCurso de Transmissões, cadetes do 4º ano da AM, em Gomes Freire (ano escolar de 1962-63). Bem-hajas, Manel C. F. Um abraço do BS.

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