Post do Cor Aniceto Afonso, recebido por msg:

  1. RELAÇÕES COM O XI CORPO INGLÊS

Introdução

O XI Corpo inglês foi constituído em agosto de 1915, sendo comandado logo desde o início pelo general Richard Haking. A sua primeira ação de maior vulto foi a participação na Batalha de Fromelles (19 de julho de 1916, como ação de diversão em relação à batalha do Somme), em que duas Divisões (uma delas australiana) foram lançadas num ataque frontal mal planeado que causou milhares de baixas e grande ressentimento na Austrália. Este episódio marcou depois toda a carreira do general Haking, mas não o impediu de continuar a comandar o XI Corpo até ao final da guerra. Manteve-se sempre na Flandres, com uma breve passagem pela frente italiana entre novembro de 1917 e final de março de 1918, exatamente o período em que o Corpo de Exército Português esteve na frente. Embora Gomes da Costa no seu livro “O Corpo de Exército Português na Grande Guerra: A Batalha do Lys” o tenha recordado como “extremamente inteligente” e leal amigo, a verdade é que as relações dos vários serviços portugueses com o seu estado-maior e com ele próprio nunca foram de grande cordialidade. Como veremos, também o capitão Soares Branco, como responsável do Serviço Telegráfico do CEP, sentiu especiais dificuldades nessas relações.

Os generais Tamagnini, Hacking e Gomes da Costa

No Serviço Telegráfico da Força Expedicionária Britânica Sir John Fowler foi sempre o seu Diretor (Director of Army Signals).

John Sharman Fowler (1864-1939)

Como seus assessores e subordinados imediatos tinha os Deputy Directors of Army Signals (DD Signals) responsáveis pelo Serviço Telegráfico ao nível Exército. No nível seguinte situavam-se os Assistent Directors of Army Signals (AD Signals), um por cada Corpo de Exército. Alguns destes responsáveis e muitos outros oficiais tinham relações próximas com o Serviço “General Post Office” (GPO) da Grã-Bretanha, tendo sido mobilizados exatamente por essa condição. No seu relatório, Soares Branco referirá em várias ocasiões a diferença entre o sistema britânico de mobilizar não apenas os responsáveis, mas também os especialistas, em especial telegrafistas e telefonistas, através do Serviço Postal da Grã-Bretanha, o que não aconteceu em relação a Portugal. Relações com o XI Corpo

Antes da entrada em linha da 1ª Divisão, Soares Branco devia definir as relações do Serviço Telegráfico do CEP com o XI Corpo e também com a 1ª Divisão. Fê-lo após várias reuniões e em nota de 13 de junho:

“No Serviço Telegráfico do XI Corpo, ontem, depois de prévia consul­ta com o Estado-Maior chegou-se à conclusão de que as ordens serão direta­mente dadas à 1ª Divisão e apenas para conhecimento elas serão também envia­das ao CEP.

Não me alongo a expor as razões de uma tal medida de ordem geral nem mesmo lhe desejo medir as causas e consequências. É um facto que tenho que aceitar.

Procurei pois, na esfera da minha ação, definir precisamente quais as atribuições que o Serviço Telegráfico do XI Corpo julga desta forma caber-lhe para com as tropas telegrafistas da 1ª Divisão, para a V. Ex.ª expor a questão e receber as instruções que por ventura julgue convenientes. 

I. Competirá ao chefe do Serviço Telegráfico do XI Corpo:
a) A interferência direta em todo o serviço técnico relativo ao estabe­lecimento, reparação e conservação das linhas e comunicações dentro da área da Divisão, para o que o chefe do Serviço telegráfico da 1ª Divisão ficará em ligação direta com o AD Signals do XI Corpo por intermédio de um oficial intérprete e de ligação.
b) Receber do Serviço Telegráfico do Corpo Português propostas para o estabelecimento de quaisquer ligações pedidas pelo Estado-Maior do Corpo Português.
c) Receber do chefe do Serviço Telegráfico da 1ª Divisão qualquer proposta para novas ligações a estabelecer dentro da área da 1ª Divisão e pedidas pelo Estado-Maior da 1ª Divisão.

II. Competirá ao chefe do Serviço Telegráfico do CEP:
a) Regular os recursos em pessoal e material que tenha por conveniente para a 1ª Divisão em virtude das ligações mandadas executar, sendo apenas obrigatória a consulta para a mudança do chefe do Serviço telegráfico da Divisão.
b) Receber do XI Corpo, sem prejuízo da transmissão direta igual à 1ª Divisão de todas as ordens e instruções que a esta unidade sejam enviadas, de forma a poder habilitar-se a, em qualquer data, substituir o AD Signals do XI Corpo.

Nada tendo recebido em contrário do Estado-Maior assim considerei basea­das as minhas relações com o XI Corpo as fiz notificar à Divisão em no­ta Nº 140 de 14-06-17, isto é, dois dias antes do começo do serviço com respon­sabilidade na Divisão.

Mas os problemas não estavam todos resolvidos. Até ao final do mês de junho, Soares Branco teve que resolver algumas questões delicadas da nova relação entre comandos que resultavam da atribuição da 1ª Divisão ao XI Corpo, e de regras aparentemente distintas das até então utilizadas pelas tropas portuguesas no âmbito do 1º Exército inglês.

De facto, escreve Soares Branco: “Não contava, porém, com um período um pouco agitado que se devia simultaneamente abrir devido às exigências absolutamente exageradas de AD Signals de XI Corpo”.

Ora essas exigências pareciam não ter sentido, por diversos motivos explicados de seguida. Em primeiro lugar, havia normas do anterior que estavam aprovadas pelo 1º Exército:

No Exército Inglês usam-se três modelos de impressos conforme o despacho é de transmissão, receção ou trânsito, e um novo impresso como envelope e recibo.

As regras de transmissão e receção diferiam algum tanto das portuguesas. Por demais eu de tal estava informado, mas como propusera ao DD Signals do 1º Exército e ao GHQ, o sistema de ligações laterais e externas ao CEP era de tal forma organizado que nunca telegrafistas portugueses transmitiriam senão com telegrafistas portugueses, e além disso como era conhe­cedor da enorme diferença de trabalho que existia entre o fazer aprender regras e sinais que uma vez se tinham já sabido, e outros processos que eram desconhecidos, havia determinado que se seguissem na Escola de Sinaleiros as regras de transmissão e se adotassem os impressos etc. em uso no Serviço Telegráfico Militar em Portugal.

Havia um mês que o serviço assim estava estabelecido e quando ele pare­cia regularizado, recebi as notas de 25-7 e de 29 do mesmo mês nas quais se exigia por fim à adoção na 1ª Divisão e nas tropas de Telegrafia Sem Fios não só dos impressos como das próprias regras usadas no Exército Inglês.

Nestas circunstâncias, Soares Branco não podia aceitar os novos procedimentos, sem expor o seu entendimento da situação:

Recusei-me dar ordens à 1ª Divisão que implicitamente teriam que ser exten­sivas a todo o Corpo e participei-lhe que a questão colocada nesses termos ia ser por mim levada ao DD Signals do 1º Exército e ao Estado-Maior Por­tuguês.

De facto, em nota de 28 de julho, o chefe do Serviço Telegráfico do CEP fazia notar que a adoção dos procedimentos em uso no serviço da Telegrafia sem fio (TSF) do Exército Britânico produziria certa confusão na instrução dos operadores portugueses, assim como no próprio Serviço, já que não poderia separar-se a operação do serviço de Telegrafia sem fios da telegrafia comum (TPF). Por outro lado, qualquer alteração que fosse imposta à 1ª Divisão levaria à alteração dos procedimentos em todo o Corpo Português, pelo que a questão teria de ser esclarecida com o 1º Exército Inglês e com o estado-maior Português.

Foi assim que, depois da consulta aos respetivos comandos inglês e português sobre a “questão que o AD Signals do XI Corpo havia ordenado duma maneira súbita e violenta”, recebeu Soares Branco a nota 9036 de 4 de agosto do DD Signals do 1º Exército, com as instruções convenientes.

Dizia, em resumo, o seguinte:

Os formulários de mensagens modificados de acordo com as vossas sugestões parecem atender aos requisitos da situação, mas a questão foi encaminhada ao QG do Exército para decisão. (…)

Concorda-se que o mesmo formulário de mensagem deve ser usado para telegramas, seja transmitido por fio ou sem fio, e que também é desejável evitar quaisquer alterações desnecessárias ao formulário de mensagem ao qual os operadores portugueses estão acostumados, usando aquele para o qual foram treinados.

Estou certo que, se o formulário modificado sugerido for aprovado pelo QG do Exército, o vosso serviço não experimentará grandes inconvenientes na sua adoção geral.

Nestas circunstâncias não podia deixar Soares Branco de transmitir a sua satisfação, de acordo com a forma como foram atendidas as suas preocupações e as suas propostas:

Em face da forma atenciosa e amigável da nota do DD Signals do 1º Exército imediatamente resolvi a dificuldade da transmissão das Estações de Sem Fios mandando adotar as regras de transmissão e receção de despachos comuns a todas as estações e postos do Exército Britânico, conservando os nossos antigos impressos embora com algumas modificações de ordem de transmissão no “preâmbulo” que tudo remediava, modificações que haviam já sido propostas pelo coman­dante da Secção de Telegrafia Sem Fios, tenente Ivo de Carvalho.

Determinei que pelo diretor da Escola de Sinaleiros fosse estudada a maneira de uniformização das regras de transmissão e receção dos despachos, e dos impressos de telegramas tanto para a TPF como para a TSF.

Alguns dias depois o problema estava completamente resolvido com os nossos antigos impressos apenas alterados em alguns dizeres do “preâmbulo” e eu recomendava às Divisões e à Escola de Sinaleiros que, tanto quanto o serviço o permitisse, fossem adestrando o pessoal segundo os regulamentos que fizera, ao tempo, imprimir e distribuir.

Estávamos em princípios de agosto e só em outubro elas puderam ter começo e execução.

Para concluir, o responsável do Serviço Telegráfico do CEP e entidade definidora das regras de transmissão no seu âmbito de ação, resume a questão que esteve na base deste primeiro incidente nas relações com o XI Corpo, que depois se repetiriam:

Desta forma julgou este Serviço ter bem patenteado ao XI Corpo:

1) – que o Corpo Português dele não recebia ordens e tinha a dependência direta da 1ª Divisão apenas como transitória;

2) – que nessas condições, qualquer ordem técnica do mesmo Corpo e que interessasse no futuro não só àquela Divisão como a todo o Corpo Português não podia arbitrariamente ser-lhe imposta como a uma estação simplesmente de trân­sito;

3) – que só o 1º Exército era competente para avaliar das dificuldades de execução de qualquer medida a executar e só a ele e ao meu Estado-Maior exporia o que julgasse conveniente;

4) – que entre o Estado-Maior Português e o Serviço Telegráfico havia, como necessariamente tem sempre que haver, a mais completa uniformidade de processos e da maneira de resolver as questões.

Conclusão

Durante todo o período de permanência na frente, entre 16 de junho e 5 de novembro, a 1ª Divisão esteve subordinada ao XI Corpo Inglês comandado pelo general Haking. Foi um período de relações difíceis entre os vários comandos e serviços, a que o Serviço Telegráfico, através da experiência do seu responsável, capitão Soares Branco, procurou responder de forma empenhada, tentando ultrapassar não apenas as dificuldades resultantes da própria situação de guerra como os obstáculos gerados pela ação de comando do XI Corpo. Foi neste período de cinco meses, entre junho e novembro, que o CEP viveu uma intensa experiência de guerra, com as tropas ainda relativamente frescas e empenhadas. Os meses seguintes, incluindo o “9 de Abril”, fariam esquecer esta experiência inicial, mas não há dúvida que ela foi importante para grande parte dos participantes. Aconteceu um pouco de tudo, como a captura dos primeiros prisioneiros alemães por forças portuguesas, como por exemplo em 14 de setembro, o fuzilamento do soldado Ferreira de Almeida em 17 de setembro, único levado a efeito no CEP, por decisão de um tribunal militar português, e também a visita do Presidente Bernardino Machado que esteve quatro dias junto dos militares portugueses deslocando-se um pouco por todo o lado, incluindo uma visita a um Batalhão em 2ª linha, o que muito preocupou o general Tamagnini.

Em relação ao relatório de Soares Branco, são várias as referências a um certo mal-estar resultante das relações estabelecidas entre o seu Serviço e os correspondentes serviços ingleses deste nível, que se prolongariam até à entrada em linha do Corpo de Exército Português. Foi nesta altura, logo em Novembro de 1917, que o XI Corpo foi transferido para a frente italiana, para só regressar em finais de março de 1918, vindo então a comandar a 2ª Divisão Portuguesa a partir de 6 de abril, nas vésperas da Batalha de La Lys.

2 comentários em “As TRANSMISSÕES na GRANDE GUERRA – Relatório de Soares Branco (8)

  1. Neste comentário ao texto 08, do cor. Aniceto Afonso, reconhecendo a sua qualidade e nada tendo a acrescentar ao seu conteúdo, vou limitar-me a referir algumas notas, procurando contribuir para o esclarecimento de algumas dúvidas que tenho o sobre as seguintes perguntas:

    • Era o general Comandante do XI Corpo amigo dos portugueses, como afirmou Gomes da Costa?
    • As bases definidas para o relacionamento dos ingleses e portuguesas na área das Transmissões eram desfavoráveis aos portugueses?
    • O sistema de utilizar pessoal especializado dos Serviços Postais Britânicos no reforço das transmissões militares teve alguma repercussão em Portugal?

    O general Richard Haking e a sua amizade com os portugueses
    No texto, a opinião de Gomes da Costa é confrontada com a de que “a verdade é que as relações dos vários serviços portugueses com o seu estado-maior e com ele próprio nunca foram de grande cordialidade”.

    Eu julgo que Gomes da Costa pode ter razão. De facto, o general Haking era inteligente, sabia falar português, o que mostra interesse pelo nosso país, e as relações que houve na área das Transmissões entre o XI Corpo Inglês e a 1ª Divisão portuguesa não me parece que tenham sido muito conflituosas e sobretudo que o general tenha estado implicado nisso.

    Em relação ao relacionamento entre as Transmissões da 1ª Divisão, CEP com o IX Corpo Inglês, considero que:

    • As competências de cada um foram propostas pelo cap. Soares Branco e aceites por todos e não davam margem a grandes desvios.
    • O incidente da “guerra dos impressos” foi um claro erro inglês que a rápida e eficaz reação de Soares Branco e o bom senso do I Exército Britânico permitiram resolver rapidamente.
    Pessoalmente penso que o general Haking não esteve metido num assunto desta natureza, de carater técnico, julgando que o pessoal das Transmissões do XI Corpo foi “o mau da fita”.

    Bases de Relacionamento do IX Corpo Inglês com o 1.ª Divisão Portuguesa

    No seu relatório o capitão Soares Branco refere que “No Serviço Telegráfico do XI Corpo, ontem, depois de prévia consulta com o Estado-Maior chegou-se à conclusão de que as ordens serão diretamente dadas à 1ª Divisão e apenas para conhecimento elas serão também enviadas ao CEP.
    Não me alongo a expor as razões de uma tal medida de ordem geral nem mesmo lhe desejo medir as causas e consequências. É um facto que tenho que aceitar.”

    Em resumo: Soares Branco aceita a solução que, contudo, parece não lhe agradar. Pela minha parte, não percebi porquê nem vislumbro uma alternativa melhor, tanto mais que a definição de competências que propôs não a contraria e acabou por funcionar na prática.

    Mobilização de pessoal civil nas transmissões militares

    O exemplo inglês de mobilização de especialistas dos Serviços Postais Britânicos para melhorar a qualidade do serviço em Centros de Transmissões importantes, na Grande Guerra, não foi seguido pelos portugueses, infelizmente.
    No entanto, anos mais tarde, em 1926, foi criada em Portugal a Brigada de Telegrafistas destinada a manter uma listagem do pessoal dos CTT e Rádio Marconi em condições de ser mobilizado, o que não chegou a acontecer, tendo a Brigada sido extinta na década de 80 do século passado.

  2. Meu caro amigo,
    Muito obrigado pelo teu comentário, que levanta várias questões interessantes. Com a continuação do nosso estudo sobre as Transmissões na Grande Guerra iremos aprofundando o conhecimento que temos dos acontecimentos e das relações que se estabeleceram. Será uma reflexão a fazer por todos. Abraço, Aniceto.

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