Post da nossa leitora Sra D. Maria Isabel Ferreira, recebido por msg:

11-4A tarde de Março começava soalheira, vivida numa aparente normalidade. A vida, lá no serviço, rolava como era costume, com o rigor humano e técnico inerente a uma grande empresa, para a qual era necessário e imperioso que os comboios circulassem dentro dos horários e em conformidade com o contratado com os clientes, o que, infelizmente, nem sempre sucedia. E eu lá estava na habitual secretária de madeira antiga. A cadeira, também de madeira, contribuía para a minha acomodada revolta de ter de ficar ali sentada oito horas por dia. Apesar disso, lembro-me de ser alegre, nova na idade, bonita na aparência e de ânimo forte, mas resignado. Também nostálgica e mística no modo de ser. Talvez herança parental.

Tinha havido a Revolução dos cravos há menos de um ano. Nessa manhã libertadora, grande parte da população, sedenta de liberdade, foi crédula, unida, sorridente e ingénua como uma criança. E eu, a caminho da mesma secretária, descia a Rua Augusta com o coração apertado de uma ignorância alegre e instintiva por uma mudança que me parecia que iria acontecer. Insolitamente, dei de frente com um carro de combate, como se Hollywood estivesse ali a treinar. Sem mais cogitações subi para cima da besta de ferro e juntei-me aos soldados, uns de corpo lá dentro e a cabeça de fora, que nem caracóis indecisos, outros mais expansivos no exterior. E sem que me mandassem sair dali, juntos mostrávamos aos que passavam, muitos incrédulos, o indicador e o outro dedo a seguir em forma de vê. Perguntei a um deles o que se estava a passar e a resposta continuava a ser os dedos em vê. Pareciam não saber mais do que eu, enquanto o navio no Tejo quase estragava aquela festa. Mas a valentia, a missão e a proteção divina fizeram História. Eu não fiz nada, mas posso agora dizer ao meu neto que, naquele dia 25 de Abril, me empoleirei numa máquina de guerra, em plena Rua Augusta!

Era casada há poucos meses com um aluno finalista da Academia Militar e só voltei a vê-lo uns quinze dias depois. Pouco a pouco, a vida acabou por normalizar minimamente, mas os cravos começaram a murchar e depressa o entusiasmo coletivo da Revolução começou a desvanecer.

E no meio de avanços e recuos, nesse dia onze de Março do ano de 1975 eu continuava na secretária antiga no 1º andar da estação de Santa Apolónia. Outra vez com o marido perdido, sabia eu lá por onde. Já estava farta de prevenções! Chegava a pensar que o casamento afinal não era, ou que só era às vezes, quando os outros, os que mandavam no marido, decidiam que fosse. E também que ficar sozinha dia e noite, aos vinte e dois anos, durante dias, dava vontade de mandar a Revolução voltar à Rua Augusta e começar tudo de novo. O povo, ingenuamente, acreditava que o país estava salvo e que a miséria, a ingratidão e a injustiça já eram coisa do passado. A liberdade existia para (quase) todos, os ordenados até tinham melhorado, mas o sossego e a reconciliação nem por isso. Até que, nesse dia, sabe-se lá porquê, os aviões militares sobrevoavam ali por cima da minha cabeça, comigo à secretária, claro.

E ao ouvir aquele barulho dos motores, inesquecível até hoje, acabou-se-me a paciência, a decência e tudo o mais que me levou a odiar a chefia, a qual, mais uma vez, mandou todos para casa ao início da tarde. Arrumei tudo à pressa, passei pela casa de banho, disse vários adeus aos que passavam por mim, sem vontade, e eles não mais. Nunca se sabia o que por ali vinha e estávamos fartos daquele desassossego.

DN 11MARDesta vez não fui para a Rua Augusta; a guerra era no ar e por lá não me empoleirava com certeza. Ainda os vi, aqueles barulhentos velozes a mostrarem-se ao povo, talvez a intimidá-lo. Mais tarde vim a saber que tinham feito um morto e vários feridos lá para o lado Norte da cidade. Marido, já sabia mais que sabido que nem vê-lo, outra vez. Ainda hoje me pergunto porque me dirigi para aquela calçada íngreme das instalações do Exército. Talvez porque soubesse que a vida militar abundava por ali. Subi e cheguei, rápida e nervosamente, à Rua dos Remédios. Aí lembrei-me de o meu marido me ter dito que às vezes estava num Estabelecimento das Transmissões ali perto. Continuei a subir e passei em frente da Santa Engrácia.

Não me intimidei e perguntei ao soldado que vi numa das portas, ao fundo da pequena rua, a olhar para o céu, se podia falar com quem mandava ali. Ou por outra, disse-lhe somente que queria falar com um general! O rapaz olhou para mim como se eu tivesse descido de paraquedas de um daqueles aviões! Meio a gaguejar e sem conseguir perceber o que fazia, ali, uma rapariga àquela hora, naquelas circunstâncias intimidatórias para qualquer um, o soldado entrou no edifício e desapareceu. Eu não me anunciei, pensei. Mas anunciar quem? Que anunciaria o meu nome? O nome de uma mulher desconhecida não seria o bastante para ser atendida por um general que estaria a tratar ou a debater os acontecimentos daquele dia, os quais seriam relevantes e mereceriam toda a sua atenção, seguramente.

Entrei por ali dentro e subi as escadas. Não ouvi nem vi ninguém. Mas espreitei para uma agradável e bonita sala de estar, da qual ainda hoje recordo as belas cadeiras de couro, uma mesa de pau-santo toda retorcida e óleos pendurados nas paredes, com rostos de homens por certo importantes ou mesmo heróis. Fiquei ali em pé, a mirar o que os meus olhos viam e, num ápice, esqueci o que me tinha levado ali: os aviões, as guerras raivosas de ganha um e perde o outro, a chegada a casa sem ninguém, o dia seguinte, o ano seguinte, até a vida na sua real vivência. E passei a viver naquela desconhecida sala uma espécie de ficção, produzida, encenada e representada unicamente por mim, sem que para isso me reconhecesse autoridade, razão ou aptidão.

Ainda fragmentada num olhar curioso, e tentando suster uma taquicardia insistente, fui repentinamente surpreendida por um homem que entrou na sala e cujo aspeto físico me pareceu ser o de um dos atores militares dos filmes clássicos, cheios de bravura e glamour. Aparentava um pouco menos de cinquenta anos, de porte altivo, boa figura, mesmo belo. De estatura alta e entroncada, a farda assentava-lhe muito bem. Mas o que ainda hoje lembro com precisão é o vistoso bigode, que lhe aprumava a elegância. Quanto a galões ou estrelas nem os vi e se os visse era bem possível não os conseguir identificar com acerto. Mas, isso foi o que menos me preocupou; para mim era o general que eu queria que falasse comigo e pronto! Se já me sentia encostada a um canto e com vontade retraída de sair dali, passei a petrificada figura que metia dó. Inclinou-se para me beijar a mão e, se ele não me ajudasse a levantar o braço, ainda hoje lá estaria naquela pose arrependida.

– Por favor sente-se. Quer tomar um whisky? Prefere com gelo ou simples?

As duas bebidas chegaram rapidamente pelas mãos enluvadas do rapaz que eu tinha visto à porta. Segurei o copo a sentir um castigo por me meter em cavalarias altas, já com a cabeça esquecida de aviões a atacar, marido perdido, sem prazo de voltar a aparecer-me, noites escuras e mal dormidas, país com militares à guerra de quartel para quartel, também por causa de civis que se exibiam à pancada ideológica e outras de outros naipes.

Um whisky?! Essa era de mais! Sentia-me a pagar um preço demasiado alto para levar a termo a rebeldia infantil de enfrentar destemida e anonimamente uma invasão aérea, num confronto militar em estilo de guerra civil, naquele dia 11 de Março, à hora de expediente, que deixou de ser. E, para além disso, enfrentei, sem saber como, uma organização militar inteira, através daquele militar tão cavalheiro que, possivelmente, ficou tão estranho com a minha presença ali como eu fiquei com a dele.

– Saiba o senhor que eu quero que tudo isto acabe! Mas que acabe já! Estou farta disto tudo, desta confusão constante, desta vida embrulhada e sem rumo. Diga-me, quando é que isto começa a ficar sossegado? Mas, afinal, que vida é esta? Os senhores têm que acabar com isto! Já não os posso ouvir!

E os aviões continuavam ali por cima de nós como aves doidas a voarem e a desaparecerem num barulho ensurdecedor. Aquele militar, de que eu nem sabia o nome, pois esqueci-o logo que mo disse, olhava para mim sossegado, insistente, como se tudo o que eu dissesse não fosse para calar. Que homem, que saber, que cavalheiro. Afinal eu estar ali, naquele despropósito, parecia-lhe normal, ou agendado antes por um secretário qualquer. Era estranho não se preocupar com o que acontecia lá fora com os seus camaradas e, se razões houvesse, por o país estar assim, possivelmente aos tiros naquele momento. No fundo, éramos dois seres muito diferentes na atuação, talvez parecidos no ser de pessoas a encenar e a provocar uma vida real, quem sabe?

– Casei há tão pouco tempo, e pensava que ia ser… bem…, já sabe, enfim, que eu pudesse estar com o meu marido, normalmente. É que casei com um homem, mas parece-me que nunca deixarei de viver com um militar. O senhor concorda?

– Sim, claro, depende, não pense nisso. Mas, quem é o seu marido?

– O meu marido é o Tenente….

– Ah sim, conheço, sei quem é. Descanse, vai ter muito tempo para estar com ele. Relaxe, diga-me lá, está assustada com isto? Isto não é nada, eles já acalmam. Estão só a mostrar os materiais e a dizer que sabem utilizá-los.

– Pois isso não me interessa! Mas o senhor pode acabar com isto, não pode?

– Acalme-se, porque assim altera-se toda a sua beleza.

Estava na hora de pousar o copo, calar a boca e sair dali.

– Como se chama?

– Maria Isabel.

– É curioso; tem o nome da minha filha!

Depois do último gole do whisky, que afinal bebi, despedi-me e voltei a insultar mentalmente o invisível, o desconhecido daquilo tudo. Olhei pela última vez a enigmática serenidade daquele que podia ser meu pai, e não mais o voltei a ver.

Ao descer a calçada ainda blasfemava: que inferno, que inferno de vida! Ao chegar lá abaixo o largo estava completamente vazio; atravessei-o sem medo, sem saber, sem vontade, sem futuro visível e fui a pé, novamente pela Rua Augusta, desta vez sem ninguém.

Passados dois ou três dias, num intervalo da secretária, olhava lá para cima e pensava como fui capaz, como consegui ir lá…

1 comentário em “O meu 11 de Março

  1. Este post, da autoria da Srª D. Maria Isabel Ferreira, para mim, tem indiscutível interesse e qualidade.
    Julgava que era o primeiro post do nosso Blogue de autor feminino, mas os meus camaradas e amigos da CHT esclareceram-me que já havia outro, que me passou despercebido.
    No texto, que muito gostei de ler, julgo de destacar a forma entusiástica como viveu o 25 de Abril e a forma como relata o seu encontro com o general Director da Arma de Transmissões no 11 de Março de 1975, em que este, de forma altamente cavalheiresca, procurou sossegar uma jovem senhora, altamente preocupada com falta de notícias do seu marido.
    Os meus votos são para que este exemplo, extremamente interessante, do testemunho de uma senhora possa vir a suscitar o aparecimento de outros textos de autores femininos no Blogue, que muito ganharia com isso.

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