Post do Maj Carlos Rosado, recebido por msg:

Foi há tanto tempo que nem tenho já memória muito clara desses tempos idos do arranque do Museu das Transmissões (Tm). Recordemos a aventura…

Em Março de 1971, na viagem de curso pela Europa, descobri que afinal gostava de ver museus. Eram museus com vida e nada que se parecesse com salas cheias de peças ‘esquecidas’ dentro de quatro paredes. Falo das visitas aos museus da Grundig, na Alemanha, e da Philips na Holanda. Neles, cada sala dispunha de expositores por vezes com peças que nós podíamos accionar com botões ou até directamente. Havia vida!

Ao chegar a Portugal, guardei sempre boa memória dessas visitas e pude saber que nada havia em Portugal que se assemelhasse.

Acabada a formação no Instituto Superior Técnico, realizei um estágio curricular e, ó surpresa, eis que inesperadamente sou ‘convidado’ a realizar um tirocínio militar de seis meses, para ganhar algum calo no contacto com África.

Algumas experiências me marcaram em Angola, para onde fui destacado. Talvez uma das mais importantes foi a noção do experimentalismo com que se lidava com as comunicações, deveras fundamentais para manter uma coesão das nossas forças. Regressámos em Março de 1973 e já se notava a fermentação do que veio a ser a Revolução dos Cravos.

Regressando à Escola Prática, recordei-me da saga angolana como Oficial de Tm, acabando por ligar duas experiências tão vívidas – os Museus que me ‘falavam’ e as dificuldades experimentadas em diversas instalações militares de Angola, onde cada problema alimentava a intuição e a capacidade inventiva do português típico. Com efeito, encontrei em Angola oficiais milicianos de Tm que penavam na incapacidade de sequer entender como funcionava um telefone ou um rádio de campanha. Por exemplo, um deles, com formação de psicologia, encontrava-se perdido em Sanza Pombo, inabilitado para fazer ‘mexer’ o equipamento a seu cargo, quase todo inoperacional.

O futuro desenhava-se no germinar lento da necessidade de se acabar depressa com uma guerra progressivamente injustificável diante das arenas internacionais. De qualquer modo, e voltando ao Museu que nem sequer existia na minha cabeça, ao falar sobretudo com Sargentos da então Escola Prática em Sapadores, apercebi-me que muito equipamento era pura e simplesmente deixado à sua sorte, sofrendo de ‘reumático’ devido às humidades e aos safanões em teatro de guerra. Tudo a monte por baixo do Serviço de Instrução. Fui ver o referido técnico-cemitério.

Juntei as peças como que por acaso, se é que existem acasos alguma vez…

Museus vivos, peças para abater aos quilos. Daí a descobrir como aproveitar salas do Serviço de Instrução inúteis foi um passo simples.

MuseuIdealizei então um Museu que servisse de apoio aos muitos militares que tanto precisavam de instrução prática, capacitando-os a poderem olhar para um rádio como um rádio imprescindível e um telefone como um telefone que tinha muito mais do que um enigmático discador.

Propus a constituição do dito Museu de Tm. Chamei-lhe Museu porque se daria vazão a peças que oscilavam entre o lixo e o eventual aproveitamento de peças. No entanto, tal Museu seria apenas aberto ao grande público militar que aterrava regularmente na Escola Prática para obter alguma formação que os habilitasse a seguir para os teatros de operações.

Apresentei a proposta superiormente, tendo-me confrontado com uma certa e compreensível oposição, ao se admitir que o referido Museu só talvez fizesse sentido se e quando aberto ao público em geral.

Como tinha no Serviço de Instrução um Cabo que desenhava e pintava bastante bem, pedi-lhe que me preparasse a primeira peça para o Museu, uma placa de madeira, com a palavra «Museu» nela inscrita. E coloquei-a sobre a porta de entrada da sala vazia mesmo defronte da entrada, a maior, com fraco uso porque raramente era preciso juntar muita gente ao mesmo tempo para a instrução.

Com o apoio de pessoal do STM (Serviço de Telecomunicações Militares), fui obtendo peças funcionais e aptas para instrução viva nas prateleiras do idealizado Museu. Difícil foi escolher entre tanto amontoado aquilo que fosse operacional para formar e adestrar o pessoal. O objectivo principal era apenas apresentar equipamento que funcionasse, desejavelmente dois de cada tipo porque na comunicação – como sabemos – há um emissor, um receptor e um canal de transmissão. Merecem ainda destaque os meus dois braços direitos em todas as acções do Serviço de Instrução, o Asp. Milº Orlando Letras Pomares e o 1º Sargº Mário de Jesus Nunes.

Entretanto, venho a saber que existiria um outro espaço com funções museológicas na Direcção da Arma de Tm, perto de Santa Clara. Tentei chegar à fala com o responsável – Cor. Bastos Moreira – e estabelecer eventuais pontes, mas isso nunca aconteceu. A preparação do que se tornou no 25 de Abril ganhou absoluta prioridade.

De qualquer forma, o primeiro dia de glória do Museu foi uma visita realizada pelo General Altino Magalhães, a quem cabia inspeccionar aquartelamentos. Na sala, a tal grande, encontrávamos telefones ligados por cabo telefónico e rádios de campanha revelavam as suas virtualidades, tudo peças que ‘mexiam’, todas estavam operacionais. Ainda me recordo da alegria do General Altino, que sabia comunicar por morse (tinha o curso de Tm das Armas, que no seu tempo incluía aquisição de competências em grafia), quando estabeleceu ligação com o Oficial responsável pela disciplina de morse, Cap. Morais, usando-se para o efeito as duas chaves colocadas em diagonal na sala. Nesse dia, o Museu ganhou vida e outra vida…

Termino com um agradecimento aos camaradas da Comissão de História das Tm que me ajudaram – numa demonstração de uma das mais belas características da vida militar, o espírito de corpo – a enriquecer este testemunho com contribuições que esclareceram pequenos detalhes que aprimoraram o rigor de apresentação dos factos descritos.

1 comentário em “Memórias do Museu das Transmissões

  1. Considero importante este post do Maj Carlos Rosado, como já tive ocasião de lho expressar, não apenas pela qualidade e cuidado postos no texto, que o cor Golias já chamou “prosa camiliana”.
    Trata-se de uma novidade para mim, e julgo que para muita gente. que tenha coexistido com a exposição de material antigo que existia, nos corredores do edifício em Santa Clara, onde estava instalada a DAT, um outro “Museu”, impulsionada pelo maj Carlos Rosado, numa sala da EPTm, com a preocupação de ser um museu interativo.
    Esta sala-museu julgo ter tido existência antes do 25 de Abril, pois quando fui comandar a EPTm, em 1976, já não existia, nem tive até agora, conhecimento da sua existência
    Parece-me de realçar que o que o maj Rosado conseguiu fazer na sua sala-museu. apresentando diverso material a funcionar, e onde os visitantes pudessem “mexer” foi sempre uma aspiração que tive na realização de Museu da EPTm e na CV do RTm mas que nunca foi possível concretizar. Por outro lado, o facto de a sala-museu ter sido apresentada pelo Comando da unidade a um visitante como o general Altino de Magalhães parece abonar a favor da sua qualidade e interesse.
    Em relação ao texto permito-me fazer duas observações:
    A primeira diz respeito ao saboroso episódio do gen Altino de Magalhães (oriundo de Infantaria) a trocar mensagens em morse com um oficial de exploraçãp, o que deve ser um caso inédito no Exército português.
    Como sabem foi o general Altino de Magalhães que concedeu a verba de 500 contos que permitiu a abertura do museu/ coleção Visitável do RTm. Uma curiosidade que eu tenho é saber em que medida essa visita teve influência na concessão dessa verba, o que só o general Altino (que sei que, com 93 anos, está, felizmente, de boa saúde física e mental) me poderá esclarecer.
    A outra diz respeito à identificação dos equipamentos a funcionar e postos à disposição dos visitantes, o que poderá ser feito pelo maj Rosado ou por outro camarada que tenha visitado a sala, se a memória lhes permitir…

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