Post do nosso leitor Sr João Freitas, recebido por msg:
Desde o início das comunicações militares, Portugal tem sido sujeito activo na concepção e fabricação de diverso tipo de aparelhos e acessórios para esse fim. Projectos originais totalmente realizados no nosso País, montagens com base em licenças estrangeiras ou até algumas cópias feitas nos mais impensáveis sítios foram-se revezando ao longo do tempo, facto que nos dá algum alento doméstico sem no entanto ter expressão fora das nossas fronteiras. Como parte de uma explicação para esse facto será preciso ter em conta que este tipo de material está sujeito a mercados de dificílima penetração, com clientela inclinada para firmas conhecidas, há muito estabelecidas no meio.
Referindo-nos apenas aos rádios, são as décadas de vinte e de trinta, e as quatro últimas, as que delimitam a criatividade e os picos de produção portuguesa neste campo. Nas primeiras duas, em unidades militares de Coimbra e Lisboa, nas outras em diversas indústrias em Lisboa e em seu redor.
Em 1969, tendo em vista a sua utilização na Guerra do Ultramar, a viabilidade das suas linhas de montagem e a possibilidade de venda ao estrangeiro (1), a ITT Standard Electrica propõe a realização de um receptor-transmissor de transporte ao dorso. É dada a esse rádio a nomenclatura “20TPL” (2).
Como se disse diversas vezes em outros artigos, a Standard Electrica foi, sem sombra de dúvida, uma das mais importantes firmas ligada à montagem de rádios militares em Portugal, tendo por esse motivo um trato recíproco muito particular e a diversos níveis com as FA. Este fator empresarial, coadjuvado por um sector militar sempre presente, com funções supervisoras e de aconselhamento, são a trave mestra da indústria eletrónica militar em Portugal há mais de cinquenta anos.
A Standard foi responsável, pela montagem sob patente dos TH.C.736 e TH.C.737, dos AVP-1, dos DHS-1 e CHP-1, e de diversos modelos de RACAL TR-28. Não esqueçamos ainda que, para além dos 20TPL, 30STPL e dos modelos anunciados anteriormente, criou e fabricou outros rádios para fixo e móvel, destinados não só às FA, como também às forças militarizadas e de polícia. Nem todos foram casos de sucesso. Após o seu fecho, apenas o seu belo edifício principal, na Av. da Índia em Lisboa defronte à antiga Feira das Indústrias (*), resistiu a décadas de abandono. Os pavilhões anexos onde se montaram milhares de rádios de todo o tipo, foram demolidos há muitos anos.
À complexidade de criar um aparelho original, fiável, e obedecendo a estreitos requisitos bélicos, juntavam-se os condicionalismos a que Portugal estava sujeito, devido à posição singular que tinha assumido em África. Evidenciavam-se essas dificuldades na simples compra de componentes com estreitos requisitos militares, para não falar no alumínio (desse tipo específico) com que viriam a ser feitas diversas peças de estrutura interna e externa. Estas dificuldades seriam solucionadas negociando com países amigos, ou servindo-nos deles como intermediários.
Não esqueçamos que, qualquer novo rádio de transporte ao dorso, iria fazer frente aos RACAL TR-28, já em utilização e que tão boas provas estavam a dar. O aparelho emergente teria que ser tão bom ou melhor. Apesar da vontade, tal não viria a acontecer. O seu sucesso interno, se o teve, foi fogo-fátuo, ao exterior não seria vendida nenhuma unidade.
Uma realidade é a montagem de aparelhos, mesmo tendo incorporação de componentes totalmente feitos em Portugal, outra totalmente diferente é, a partir do zero, fazer um rádio completamente novo. Aparentemente sem experiência recente neste campo (referimo-nos a aparelhos tácticos de transporte ao dorso), os engenheiros da ITT, depararam com dificuldades em juntar num mesmo produto final a técnica, a operacionalidade, a originalidade e a estética. Prova disso são os vários protótipos totalmente funcionais que temos encontrado ao longo dos anos, para além de diversos modelos conceptuais mostrados em catálogos.
Nesta amálgama de versões, que nunca passaram à fase de produção em série, já observámos de tudo, por exemplo: diversas caixas exteriores com e sem nervuras de reforço, diversos painéis de comandos e alterações de disposição dos mesmos, alterações das tomadas de periféricos e na forma de encaixe para a antena tubular, até a alteração radical da posição do pack de baterias, da parte inferior do rádio para um dos seus lados! Estas sucessivas modificações, consumidoras de dinheiro e energia, estão também patentes nos periféricos. A profusão de versões diferentes acabadas e a total falta de informação fiável sobre o assunto, leva-nos a ter enorme dificuldade em determinar onde acabam os protótipos, e onde começam as pré-séries (se as houver) e diferentes modelos finais e a sua evolução. Neste caso, como em muitos outros, os catálogos e promocionais de fábrica não são base de pesquisa segura, ao apresentarem, como dissemos, por vezes, modelos conceituais que nunca irão sair do estirador.
Como produto final, com produção significativa, sobressaem pelo menos duas versões finais que têm como distinção o número de canais (ver quadro abaixo). Ambas pintadas em tons de verde oliva (em 2 ou 3 cores de padrão NATO/RAL), sem nomenclatura que as distinga, usando microtelefones tipo RACAL TR-28 e sacos de transporte em lona de má qualidade mas bom acabamento. Ao ter um rádio destes na mão algo nos diz da sua origem lusitana, algo que não podemos, em certeza, definir, mas que pressentimos. Decerto não serão apenas as indicações de função em português (existem em português e inglês), talvez seja a mistura de estilos e de soluções para diversos problemas que nos dá essa necessária informação.
Mal-amado desde o princípio, visto de soslaio pelos militares que no início da década de setenta tinham mais que fazer do que andar a experimentar um projecto novo, e em parte desnecessário, incómodo de transportar, com alguns problemas electrónicos (que teriam sido facilmente resolvidos) e uma intrincada alteração de frequências, onde não bastava a simples substituição dos cristais. Tendo ainda que se confrontar com o seu rival TR-28, rapidamente passa para um segundo plano de onde nunca sairá. Muito poucas unidades chegarão ao Ultramar. O exército, sem saber o que fazer com eles, resolve ceder à Cruz Vermelha Portuguesa muitas unidades. Com essa nova gerência também não têm sorte, continuando arrumados a um canto (parte deles na antiga delegação da Amadora e na sede em Lisboa), até ao aparecimento do inevitável sucateiro.
Uma parte do espólio não utilizado, resultante da sua produção, tal como gabaritos de montagem, incontáveis excedentes novos do mais variado tipo e fase de acabamento, diversos protótipos e material pronto, foi parar em 1994 a um industrial de reciclagem de excedentes metálicos (leia-se, ferro-velho!) perto de Lisboa.
Pouco tempo depois, a Standard Electrica, persistirá teimosamente na vã tentativa de “um rádio português” e lançará o “30STPL”. Seria outro infeliz projecto do qual falaremos proximamente. Somente em 1978/79, o P/PRC-425, planeado e executado na Centrel, faria esquecer estes percalços e relançar a indústria de comunicações militares tácticas num dos caminhos ao seu alcance. Posteriormente a Sistel lançaria o P/PRT-825 e outros. Atualmente a EID introduz no mercado diversas versões da série 525.
João Freitas
Características dos dois principais modelos 20TPL, sendo a sua principal diferença o número de canais.
Rádios receptores/transmissores de transporte ao dorso, comandados a cristais. Dotando-os de suporte especial podem ter utilização fixa ou veicular. Estavam previstos vários modos de carregamento das dez baterias de NiCd, incluindo um gerador manual (muito similar a um modelo inglês). Foi anunciada uma caixa de alimentação, destinada a albergar pilhas secas de 1.5V cada. Nunca a encontrámos, nem ninguém se lembra da sua real existência. Estava contemplada uma alimentação de 220Vca/12Vcc para utilização em posto fixo.
Frequências: 2Mhz aos 12Mhz
Canais: 6 ou 23, ambos comandados a cristais. As versões de 23 canais são em número muito superior
Modulação: AM; USB ou LSB e CW
Potência do trm.: 20W em SSB, 10W em CW
Alimentação: 12V em 2 packs recarregáveis de 6Ah ou 3.5Ah
Peso: Cerca de 10 quilos c/ acessórios
Notas:
(1) Visando esses mercados, os catálogos e manuais técnicos tinham versões em inglês.
(2) A sigla “20TPL” poderá ser a abreviação de TRANSISTORIZED PORTABLE, forma já reduzida da designação de fábrica – “Model 20 TPL, Transistorized Portable Combat Set”. Foi-nos dito, há alguns anos, por dois engenheiros ex- responsáveis da ITT (áreas da metalomecânica e do desenvolvimento dos módulos) que essa sigla teria o significado de “Telefone Portátil Lisboa”. Não sabemos qual delas será a certa (pensamos ser a primeira!), ou se haverá ainda uma terceira hipótese.
Haverá por aí alguém que nos possa esclarecer?
(Adaptado de um artigo saído na revista “QSP”)
(*) – Onde hoje funciona a OML (Orquestra Metropolitana de Lisboa)
O excelente post do sr. João Freitas refere-se exclusivamente, como assinala, à produção, pela indústria nacional de equipamentos rádio para o Exército.
Convém acentuar que a produção industrial nacional esteve ligada a outros equipamentos para além dos equipamentos rádio., como telefones, heliógrafos, cabines, carregadores de baterias, etc, dos quais apenas vou referir aqui o caso da telegrafia ótica e da telegrafia elétrica.
No período da telegrafia ótica em Portugal, que decorreu durante quase meio século, entre 1810 e 1855, foram utilizados apenas equipamentos desenvolvidos e fabricados em Portugal.
O grande responsável por esta proeza foi Franscisco António Ciera, que desenvolveu o sistema de telegrafia ótico português, que se comprovou ser competitivo com o inglês nas Linhas de Torres e que foi fabricado em Portugal no Arsenal do Exército.
No campo da telegrafia elétrica convém também assinalar que as primeiras experiências no Exército foram realizadas em 1866, emTancos, numas manobras, em que as transmissões foram dirigidas pelo então tenente Bon de Sousa.. Os telégrafos elétricos usados foram fabricados em Portugal pela casa Hermann, segundo um modelo Dyne, emprestado, para o efeito, pelo rei D. Luís.
Em relação ao material rádio fabricado em Portugal acrescento apenas o seguinte:
• O sr. João Freitas refere o trabalho das oficinas de Coimbra, dirigidas pelo tenente-coronel Virgílio Quaresma, cuja importância aproveito para realçar. Com efeito, estas oficinas, nos anos 20 do século XX, desempenharam papel fundamental, permitindo com a construção de novos equipamentos colmatar a falta de verba para adquirir rádios novos indispensáveis à rede radiotelegráfica militar de importância crescente no país; o que também era urgente para cumprir o estipulado pela UIT quanto à mudança da tecnologia de faísca para a de onda contínua. Deve ser dos poucos casos no Exército em que uma organização assume a construção dos próprios equipamentos que utiliza.
• No que se refere ao rádio 20TPL considero de destacar que se trata de uma iniciativa invulgar da indústria portuguesa, que julgo ter sido a primeira e única vez que sucedeu, de construir um rádio sem ser por encomenda dos militares, mas por iniciativa própria. Revela empreendedorismo e era arriscado –como asinala o autor do post.- visto que a fasquia estava muito alta pois tratava-se de substituir o TR-28, rádio altamente prestigiado pelos operacionais do Exérrcito.
O rádio foi verificado pela DAT e não chegou a ter a aceitação que o fabricante esperva.
Daí surgir a segunda tentativa, cuja evolução espero poder vir a comentar quando o sr. João Freitas tiver a amabilidade de nos brindar com o post que nos promete sobre essa matéria.
Excelente artigo sobre um radio que eu desconhecia.
Parabéns ao autor!
Na sequência do comentário anterior pretendia acrescentar a transcrição de de uma informação da DAT dirigida ao Ministro do Exercito, por sugestão do cor Costa Dias, que me chamou a atenção para o seu interesse, visto mostrar a situação dos equipamentos rádio 20 TPL, em finais de1972 , e a posição da DAT sobre os equipamentos
…. “2. Relativamente à última entrega dos 50, 20 TPL em Agosto ela só terminou em 13 NOV 72, data do último auto de receção, por dificuldades do DGMT em que foram entregues só 4 porque um equipamento teve de ser devolvido à Standard por não funcionar e que só veio a ser entregue novamente este mês. Como também só agora a Standard mandou para a Região Militar de Angola os carregadores e estão em falta alguns sobressalentes. Dado que para se evitar o imposto de consumo a firma os enviou diretamente para Angola, Guiné e Moçambique.
3. A DAT mandou realizar na EPT ensaios laboratoriais completos comparativos do 20 TPL com o RACAL TR 28 B2 e com tristeza deve dizer-se que os resultados do 20 TPL são de molde a se por em dúvida o seu comportamento em campanha.
Não pode, por isso, pensar-se na sua aquisição sem se receberem ao relatórios desse comportamento nas diversas Regiões Militares Ultramarinas onde estão em ensaio 45 desses equipamentos respetivamente 15 em cada uma das províncias da Guiné, Angola e Moçambique e ainda 5 numa unidade da Metrópole para ensaio em exercícios de campo. Daqui resulta a razão porque ainda não se abriu concurso para estes equipamentos
Deve salientar-se que a DAT só tem um único interesse, como lhe é devido, fornecer às tropas que se batem equipamentos de que esteja convencida da sua qualidade postergando para segundo plano interesses comerciais, como mandam os seus imperativos de conveniência.”