O Polígono militar de Tancos, onde se situaram a Escola Prática de Engenharia (hoje Regimento de Engenharia nº1), o Batalhão de Caçadores Pára-quedistas, mais tarde Regimento de Caçadores Pára-quedistas, mais tarde ETAT (hoje Escola de Tropas Pára-quedistas), a Base Aérea nº 3 – onde eu vivi 10 anos, mais tarde CTAT (hoje Unidade de aviação ligeira do Exército) e o Batalhão de Transmissões nº3 do Casal do Pote (extinto em 1967) é bem conhecido dos militares portugueses, sobretudo dos mais antigos, e das populações da área, nomeadamente Entroncamento, Tomar, Abrantes, Tancos, Constância e Praia do Ribatejo, onde ainda hoje residem muitos reformados militares e seus familiares.

O Polígono militar de Tancos, hoje (vista Google)
O Polígono militar de Tancos, hoje (vista Google)

Limitado aproximadamente pelas povoações de Tancos (civil) a oeste, pelo Tejo a sul, até à Praia do Ribatejo (antiga Paio de Pele), Fonte Santa, Vale de Poços e Madeiras a leste, e pelo Seival, a noroeste, ocupa uma área de cerca de 380 hectares.

O que muitos desconhecem é que a sua existência remonta a 1866, quando ali foi criado, numa charneca cheia de mato e pedras, e em tempo recorde, um Campo de Instrução e Manobra para o Exército. Decidida a aquisição dos terrenos, que decorreu de forma amigável com as dezenas de proprietários, pela quantia total de 14.725,752 réis, foi possível construir no reduzido tempo de cerca de 40 dias (a brigada de engenharia começou a trabalhar no dia 21AGO) um enorme campo militar para alojamento e exercício do Exército, com 274 construções em madeira, centenas de barraquins de lona, paióis, hospital, enfermaria veterinária, cavalariças, matadouro, padaria, cozinhas, refeitórios, correio, abastecimento de água, etc, a tempo de receber os milhares de homens que ali se começaram a juntar no dia 01OUT1866. Este terá sido o primeiro “milagre de Tancos“, a que se seguiu, na primavera de 1916, um outro, mais conhecido, que foi a extraordinária improvisação para, em três meses, transformar o polígono militar de Tancos, na ocasião estendido até à planície de Montalvo, a meio caminho para Abrantes, numa estrutura capaz de receber e treinar uma divisão de instrução com vinte mil soldados. O Corpo Expedicionário Português partiria em Janeiro de 1917 para combater na Flandres, a nossa frente europeia na Grande Guerra

Acampamento-Tancos
Parte do acampamento em 1916
Montalvo
O grande desfile militar em Montalvo (22JUL1916)

O detalhado relatório final, publicado em 1868, mas escrito em 1867, da responsabilidade do Coronel do Corpo do Estado Maior António de Mello Breyner, que fora o Sub-chefe do EM do Campo, merece ser aqui destacado nos aspectos mais marcantes, nomeadamente os que referem a utilização, pela primeira vez em Portugal, da telegrafia eléctrica em campanha:

Relatório sobre o Campo de Instrução e Manobra
que teve lugar na Charneca de Tancos
no mês de Outubro de 1866

Sendo reconhecida a necessidade de dar ao exercito uma instrucção pratica e desenvolvida do serviço de campanha, e de se adextrar nas grandes manobras e exercícios, foi decretado na organisação do exercito de 20 de dezembro de 1849 o estabelecimento de um campo do instrucção, determinando-se por portaria de 18 do março de 1861 que o campo de instrucção fosse estabelecido no sitio das Vendas Novas, indo ali durante um até dois mezes, no outono de cada anno, a força que o governo designasse para aquelles exercícios.

Esta útil medida, apesar de se haverem feito alguns trabalhos preparatórios, não pôde levar-se a effeito, até que no anno passado o ex.mo ministro da guerra, António Maria de Fontes Pereira de Mello, avaliando a sua importância e a vantagem que d’ahi resultaria ao exercito, vencendo todas as difficuldades e removendo todos os embaraços que se apresentavam, ordenou a formação do campo, nomeando previamente, por portaria de 9 de julho do mesmo anno uma commissão com o fim de propor todas as medidas para a realização d’aquclle pensamento, e de modo que resultasse ao exercito a máxima instrucção e disciplina.

A commissão, em desempenho da sua missão, tratou de proceder ao exame dos terrenos próximos da capital, em que se podesse estabelecer o campo em questão, o não os encontrando com as precisas condições, nem mesmo a Granja do Marquez de Pombal, entre Cintra e Mafra, que lhe fora indicada, dirigiu suas vistas para o campo das Vendas Novas, e para a charneca de Tancos, tendo de abandonar o primeiro, comquanto fosse o marcado, como dito fica, pelo encontrar pouco salubre, aceitando a segunda localidade, comquanto a 115 kilometros distantes de Lisboa, mas por ser de fácil communicação, tanto pelo caminho de ferro como pelo Tejo, ordenando a alguns dos seus membros que ali fossem para a reconhecer e examinar.

A commissão delegada marchou no dia 25 de julho para proceder ao reconhecimento do terreno, sua extensão, natureza do solo, qualidade e quantidade das aguas nativas, dando em seguida parte do que encontrara; mas reconhecida a necessidade da competente planta, para mais segura informação, foi esse trabalho encarregado a uma brigada do corpo do estado maior, que já havia levantado a da Granja do Marquez, e que com a maior presteza e perfeição com que são feitos todos os trabalhos d’aquelles officiaes, a levantaram na escala de 1 para 5:000, entregando-a depois á commissão delegada, que em presença d’esse documento pôde rectificar a sua primeira informação, de que o terreno era bom, sadio, ponto importante com relação á defeza do paiz, de fácil communicação com a capital, com boas aguas nativas, mas em pequena quantidade, podendo porém a sua falta ser supprida com as do rio Zêzere, ou do Tejo, comquanto de difficil trabalho, pela altura a que tinham de ser elevadas as primeiras, que todavia julgava preferíveis ás segundas, porquanto se havia de sujeitar o serviço do campo, ao do caminho de ferro, por ter a canalisação de o atravessar; notando por ultimo que para o fim destinado, achavam que o campo só admittia para acampar, satisfazendo-se a todos os preceitos escriptos, e tendo um bom campo de alarme para manobra, a força de 4:000 até 6:000 homens de todas as armas.

A charneca de Tancos é quasi plana, numa elevação de 50 a 60 metros acima dos rios Tejo e Zêzere que a limitam pelo sul e leste, e 40 a 50 metros pelo norte e sul, pelas ribeiras do Seival e de Tancos, comprehendendo uma área de 380 hectares, e o seu perímetro de proximamente 7:200 metros correntes.

Recebidas pelo ex.mo ministro da guerra estas informações, mas querendo ter toda a certeza da salubridade do campo, ordenou que dois facultativos militares acompanhassem a commissão informadora, que ali tornou no dia 27, dando-se depois parte da exactidão com que, mesmo pelo lado da sanidade, tinha sido apreciado aquelle local. Julgado portanto o campo em boas condições, por portaria de 3 de agosto foi determinado o estabelecimento do acampamento na charneca mencionada, para os exercícios e manobras no anno findo, esperando-se d’esse ensaio, para definitivamente se resolver, se aquelle terreno poderia com vantagem ser destinado permanentemente para aquelle fim.

Planta do Campo de Instrução e Manobra
Planta do Campo de Instrução e Manobra (clique na imagem e depois, em baixo, volte a clicar na definição, para a aumentar, e de novo na imagem, para ver em detalhe)

Determinado o campo e marcada a força que ali havia de reunir, e que posteriormente por portaria de 12 de setembro foi designada, isto é, 3 brigadas de infanteria na força de 7:400 homens, 1 brigada de cavallaria na força de 1:278 homens e 951 cavallos, 1 regimento de artilheria de 6 baterias, e 1 bateria de montanha, na força de 702 homens, 30 bocas de fogo, 125 cavallos e 240 muares, 1 batalhão de engenheria de 506 homens, do corpo de administração que devia constar de 189 praças, 4 cavallos e 42 muares, formando um total de 10:075 homens, 1:116 cavallos, 282 muares e 30 bocas de fogo; procedeu a brigada do corpo do estado maior, debaixo da direcção do ex.mo general chefe do estado maior, Carlos Benevenuto Cazimiro da Silva, ao traçado do acampamento, subordinando-o ao terreno dado, e á força marcada: assim pois estabeleceu-o com o flanco direito apoiado no Tejo, a frente coberta pelo rio Zêzere, e o flanco esquerdo tendo a ribeira do Seival, ainda que de pequena importância, formando duas linhas, sendo a segunda considerada reserva.

1866 - Acampamento visto do Alto da Carrascosa (Monte D. Luis) / gravura de B. Lima e G. Pereira
1866 – Acampamento visto do Alto da Carrascosa (Alto D. Luis I) / gravura de B. Lima e G. Pereira  (clique na imagem e depois, em baixo, volte a clicar na definição, para a aumentar, e de novo na imagem, para ver em detalhe)

E o relatório prossegue com uma descrição muito detalhada do campo e das instalações, podendo ler-se a dada altura – … na distancia de 600 metros, sobre uma altura de 40 metros acima do nivel do campo, denominada Outeiro da Carrascosa, mas que depois tomou o nome de Alto de D. Luiz I, se levantaram as barracas reaes para Suas Magestades, El-Rei D. Luiz no centro, El-Rei D. Fernando á direita, e para Sua Alteza o Senhor Infante D. Augusto á esquerda; na retaguarda as destinadas aos seus camaristas e ajudantes, e mais comitiva, e para o poente as barracas para o ex.mo ministro da guerra, e marechaes do exercito duque de Saldanha e conde de Santa Maria, assim como se haviam também disposto outras para os generaes. ou outras personagens que fossem visitar o campo.
Alem d’estas barracas haviam-se construido as cozinhas para serviço de Suas Magestades, de 15 metros de comprimento, 6 metros de largura e 3 metros de altura, e para s. ex.a o ministro, de 4m,5 de comprimento e largura e 3 de altura.
Os abrigos para os cavallos de serviço a Suas Magestades, tinham 36 metros de comprido, 6 metros de largura e 3 metros de altura, e para os cavallos de serviço das outras personagens de 10 metros de comprido, 4m,5 de largura e 3 metros de altura.

O monte D. Luis e o terreno de manobra, hoje, vistos da torre da ex-BA3
O monte D. Luis e parte do terreno de manobra, vistos da torre de controlo da ex-BA3

No extremo do campo, na retaguarda da esquerda da linha, e sobre uma ondulação do terreno bem arejado, e nas condições devidas, foi construido de madeira o hospital militar, bello edifício de 74 metros de fachada principal, incluindo dois corpos avançados de 8 metros por 7 metros de largo.

E mais à frente: Em igual distancia proximamente da primeira e segunda linha (dos estacionamentos das brigadas), em ponto um pouco elevado, estava assente o quartel general;… para o sul e norte duas barracas de madeira, a do lado do sul do feitio de uma casa suissa (Chalet) foi destinada a servir de gabinete photographico do campo, e a outra, em estylo egypcio, á estação de telegraphia electrica;

As manobras do Exército tiveram lugar durante todo o mês de Outubro de 1866. As unidades começaram a marchar para o campo logo no dia 1, tendo o Bat de Caçadores nº5 sido o primeiro a chegar, logo na tarde desse mesmo dia, e prolongaram-se até meados do mês. A maioria foi transportada de comboio, até à estação nova (hoje estação do Almourol), mas unidades houve que por terra seguiram a cavalo e até uma que foi transportada num vapor (entre Lisboa e o Algarve).

Anx L1Anx L2O comandante em chefe foi o general de divisão Visconde de Leiria, o segundo comandante o general de divisão José Gerardo Ferreira Passos, o chefe do EM do campo o general de brigada Carlos Benevenuto Cazimiro, sendo as três brigadas de Infantaria comandadas respectivamente pelos generais de brigada Augusto Xavier Palmeirim, Visconde do Sardoal e José Manuel da Cruz, a brigada de cavalaria pelo general de brigada Jeronymo Maldonado da Silva Eça e a brigada de Engenharia pelo TCor do Corpo do Estado Maior de Engª Joaquim António Esteves Vaz. O chefe divisionário – director da telegraphia, foi o tenente graduado de Infª Augusto Bon de Sousa.

Comando e Quartel General
Comando e Quartel General

No dia 14 o rei D. Luis visitou o acampamento e as demais instalações e assistiu a uma missa campal. Todos os dias se realizaram exercícios por Corpos e Brigadas mas, nos dias 20, 23 e 25, houve três grandes exercícios de armas combinadas. Finalmente, no dia 27, na presença do rei D. Luis I, da rainha D. Maria Pia, do príncipe D. Augusto de Bragança (irmão do rei, então com 19 anos, que seguiu a carreira militar e chegou a general de divisão) e do rei D. Fernando II (que enviuvara de D. Maria II em 1853 e fora regente na menoridade de D. Pedro V, o filho mais velho, falecido em 1861), teve lugar o grande exercício final, em ambas as margens do Tejo, aproveitando o lançamento pela Engenharia de uma ponte sobre 33 barcos, com 230m de comprimento e 2,9m de largura, entre Tancos e o Arrepiado (local que até hoje é sempre usado, como se verifica no exercício Tridente da NATO que decorre por estes dias):

Chegadas as tropas a Tancos (civil) tomou posição á direita e esquerda da ponte, em local apropriado, a bateria de montanha. com o fim de proteger a passagem do rio, caso o inimigo a tentasse impedir; assim como o regimento de artilheria n.° 1, que occupou para o mesmo fim as alturas da margem direita, e bem assim para sustentar a retirada da força, conjunctamente com a infanteria que formava a reserva com a cavallaria.

O ex.mo commandante em chefe estabeleceu o seu quartel general próximo á ponte.

Dada esta disposição á força protectora do movimento, marchou o batalhão de caçadores n.° 2, que com a maior presteza transpoz a ponte e em atiradores coroou os montes, que em alguns pontos são de difficil accesso, fazendo logo um vivíssimo e bem sustentado fogo de fuzilaria, sendo supportado pelos regimentos de infanteria n.os 5 e 16, mandados em seu apoio; seguiram depois as mais forças do ataque, bateria de montanha, meio esquadrão de cavallaria n.o 5, e o general commandante acompanhado de uma estação telegraphica de campanha, que se poz em communicação com outra do quartel general, com a qual esteve em continuada correspondência, e finalmente o batalhão de caçadores n.o 9.

Verificada a passagem destas forças, tomaram ellas as posições convenientes, fazendo muito fogo a artilheria de montanha em uma eminencia, varrendo com os seus tiros todo o terreno em frente do flanco direito: suppondo-se haver o inimigo conhecido o seu descuido e chamado em seu auxilio grandes forças, o combate tornava-se desigual e repellindo o ataque, e obtendo vantagem tentava flanquear a posição com o fim de tomar a ponte e impedir a retirada á força atacante, comquanto o regimento de infanteria n.° 16 e batalhão de caçadores n.° 9 estivessem collocados para impedirem aquelle movimento e sustentarem a retirada.

O ex.mo general em chefe, em presença das imaginadas demonstrações do inimigo, que lhe foram communicadas telegraphicamente, ordenou pelo mesmo meio, a retirada das forças, satisfeito o fim da operação.

A determinação d’esta ordem foi executada com regularidade, sendo a retirada de toda a força protegida pela artilheria do regimento n.° 1, e pelos fogos dos corpos da margem direita postados para esse effeito, e apenas passara a ultima praça, cortou-se a ponte com a maior rapidez, produzindo um bello espectáculo.

Findo o exercido regressaram ao campo Suas Magestades e Alteza, e collocados devidamente, ali receberam a continência que as tropas tiveram a honra de fazer áquelles augustos senhores, desfilando para os seus abarracamentos.

Recolhidos ás barracas reaes, fizeram a honra de convidar a jantar a todos os generaes, e mais officiaes a quem da primeira vez fizeram igual distincção.

Havendo tambem entrado n’aquelle exercício a telegraphia de campanha, empregada pela primeira vez entre nós, e convindo ser conhecido o respectivo apparelho, adiante vae descripto, devendo antes consignar, que o serviço telegraphico do campo foi estabelecido no dia 27 de setembro pelo chefe divisionario Augusto Bon de Sousa, constando de três estações, a do quartel general, paço e administração militar, tendo esta ultima um fio directo para o entroncamento, communicando com o do caminho de ferro, para facilitar as ordens para transportes de géneros, e material pelos comboios expressos e mesmo ordinários.

O numero de palavras transmittidas desde o dia do seu estabelecimento até o dia 31 de outubro foi de 128:692. Os apparelhos para as linhas do estado eram do systema Morse, e para as do caminho de ferro do de Bréguet.

Na telegraphia de campanha o fio conductor empregado era de duas dimensões de diâmetro (0m,001 o 0m,002) de cobre destinado a ser collocado no chão de rastos, achando-se isolado por duas capas de algodão e uma camada de verniz.

A extensão do fio de que se podia dispor era de 13 kilometros, enrolado em seis bobines (carretel) de 0m,80 de altura, cada uma com 500 metros de fio, e o resto em uma bobine grande colocada sobre uma padiola, pesando com o fio 114 kilogrammas, e podendo sem custo ser conduzida por três homens.

As bobines pequenas que tinham um eixo ôco, que atravessava um outro de ferro que saía pelas extremidades, eram conduzidas por dois homens, pegando-lhe cada um de seu lado, e deixando o fio pelo chão, desenrolando-o á proporção que marchavam.

Os apparelhos eram três do sistema Morse com pilhas de Bunsen, compostos de doze elementos com sulphato básico de mercúrio, por não haver em Lisboa o sulphato acido, que é o que deve ar empregado n’estas pilhas.

Estava cada um acondicionado dentro de uma mochila de pelle de vitella do tamanho das ordinárias distribuídas ao exercito, sendo conduzidas ás costas de soldados pela mesma forma, os quaes para esse fim foram postos a disposição do chefe da telegraphia.

O aparelho foi fabricado pelo engenheiro de instrumentos de precisão Hermann, antigo discipulo do instituto industrial, pelas diligências do director geral dos telegraphos do reino, o ex.mo sr. José Vitorino Damásio, bem conhecido propugnador das industrias da nossa patria, tendo-se seguido o modelo de um de Digney, que pertence a Sua Magestade El-Rei D. Luiz, que se dignou confia-lo para aquelle fabrico ao dito director, o qual, homem de sciencia e de amor pelo paiz, quiz fosse experimentado no campo de instrucção e manobra, entregando-o ao cuidado e estudo do muito inteligente e bom empregado chefe divisionario acima mencionado, que gostoso aceitou o encargo de proceder ás necessárias experiencias d’aquelle tão grande como útil auxiliar nas operações da guerra.

Este chefe, que montara os telegraphos no campo e que fazia parte do quartel general, havia por vezes experimentado a conductibilidade do fio em differentes distancias, não valendo a pena fazer uma experiência definitiva no campo de alarme, porque a sua pequena extensão tornava quasi inútil a applicação d’aquelle poderoso e rápido meio de transmissão de ordens, não tendo tambem pessoal montado, nem os meios precisos, que aliás convém ter, como existem já em outras nações.

Na Prússia e na Itália usam de um carro próprio aonde vae o apparelho e o telegraphista, o que se não fez por falta de tempo, alem de que em um paiz montanhoso como o nosso, em muitas partes não poderia ser empregado com vantagem.

Offerecendo o exercício do dia 27 de outubro bom ensejo para se experimentar a telegraphia de campanha que fica descripta, porquanto atravessando a tropa o rio, e tendo de operar a grande distancia do commandante em chefe, com quem convinha communicar-se com rapidez, offereceu-se o sr. Bon de Sousa para acompanhar a força atacante, como effectivamente acompanhou, pondo-se ás ordens do respectivo commandante, o general Augusto Xavier Palmeirim. Para o fim desejado deixou estabelecido o telegrapho volante junto ao quartel general sobre uma pequena mesa de tesoura, extremamente portátil, e dada a ordem de avançar, a força marchou com um outro telegrapho, sendo acompanhado de seis guardas fios e quatorze soldados do regimento de infanteria n.° 2, e um sargento, mandados para esse serviço: destes um levava ás costas o apparelho, e os outros conduzindo as bobines pequenas. O fio ia sendo desenrolado em marcha na retaguarda do batalhão de caçadores n.° 2, pelo lado esquerdo da ponte, á qual era fixo por meio de verrumas do tamanho ordinário, enterrando-se na testa da ponte na margem esquerda para não ser partido pela cavallaria, que seguia na retaguarda da brigada de telegraphia, continuando depois até ao ponto em que o general Palmeirim o mandou estabelecer, tendo-se desenrolado 2 kilometros de fio, tendo sido feitas as ligações das differentes porções, com torçadas abrigadas por pequenos tubos de guta-percha, fortemente atadas nas extremidades com nastro.

Esta linha foi enterrada mais duas vezes por causa das passagens das tropas, o resto ou pelo chão, ou suspenso aos muros e silvas, etc.

Apenas estabelecido foi o telegrapho, começou a transmissão dos despachos do general Palmeirim para o quartel general e deste para aquelle. Tendo por fim dado parte, como já foi mencionado não poder sustentar-se, foi-lhe dada ordem de retirar, o que começou a executar-se logo, levantando o posto telegraphico quando passaram as ultimas tropas da força atacante, marchando na frente da guarda da retaguarda como é uso, atravessando portanto a ponte momentos antes de ser cortada.

Alem destes apparelhos, havia um outro no quartel general e ligado aos intermédios da linha, ao longo do caminho de ferro para Lisboa, base principal das operações.

A experiência teve o melhor resultado, a conductibilidade do fio, posto que enterrado por tres vezes e lançado sobre o terreno, era boa, assim como os apparelhos muito sensíveis. A corrente eléctrica, posto que se desenrolassem só 2 kilomctros, atravessou 8, porque se ligaram todas as bobines.

A força avançada ainda mais continuaria em comunicação, não só com o quartel general, mas tambem com Lisboa.

Os soldados, posto que fosse a primeira vez que fizessem similhante serviço, o desempenharam, assim como os guarda-fios, com o maior zelo e boa vontade, como informou o chefe citado o sr. Bon Sousa, lendo-se prestado a fornecer todos estes esclarecimentos, assim como os srs. capitães António José da Cunha Salgado (cap de Cavª, chefe de toda a administração militar do campo) e Ladislau Miceno Machado Alvares da Silva (cap de Engª, responsável pelo abastecimento de água desde o Zêzere e das fontes existentes na área), cada um na parte que se refere ao serviço de que estavam encarregados.

Verifica-se pois que a telegrafia eléctrica de campanha foi entre nós pela primeira vez utilizada em Tancos, no longínquo dia 27 de Outubro de 1866, sob a chefia de Augusto Bon de Sousa, e com o maior sucesso. Também a capacidade de decisão das chefias militares de então e a rapidez na execução da criação e utilização do campo (desde a nomeação de uma comissão para escolha do local, em 09JUL, até ao inicio das manobras, em 01OUT), devem ser, ainda hoje, motivo de orgulho para todos nós.

5 comentários em “Tancos, as manobras de 1866 e a telegrafia de campanha

  1. É pena que o “Polígono militar de Tancos” não seja, na atualidade, mais utilizado com U/E/O, in loco, para a integração das diversas armas e serviços, no contexto da formação, com o apoio da Brigada Mecanizada e respetivas infraestruturas, para a prática dos procedimentos doutrinais.

    1. Absolutamente.
      Excelente campo para onde deviam convergir periódicamente as forças aquarteladas junto dos meios urbanos. Meios urbanos importantes para efeito de recrutamento e mobilização nomeadamente de reservistas. ‘Reservistas’ numa prática anual desaparecida com a mudança das Tropas Pára-quedistas para o Exército, num ‘conceito’ a exigir desenvolvimento. Tal como em S. Jacinto/Aveiro, existe uma zona ajustada a treino conjunto envolvendo meios terrestres, aéreos e navais/fuzileiros.

  2. Este interessante post do coronel Canavilhas, baseado no detalhado relatório do coronel António de Mello Breyner das manobras de Tancos de 1866, onde era o subchefe de Estado Maior do Comando das manobras, vem recordar um importante passo da evolução das transmissões no século XIX.
    Com efeito, em 1866, as Transmissões não existiam no Exército, desde a extinção do Corpo Telegráfico em 1864 e a integração do seu pessoal numa organização civil.
    O Relatório realça bem, e em detalhe, a importância das Transmissões nas manobras, o que por ser invulgar me despertou a curiosidade de conhecer alguma coisa sobre o seu autor.
    O coronel António de Mello Breyner (1813-1886) era, em 1866, coronel do Corpo de Estado-Maior, oriundo de Cavalaria, distinguira-se nas lutas liberais contra os miguelistas, foi Diretor da Revista Militar, chegou ao posto de General de Divisão e teve várias obras publicadas. Esta faceta literária, que se manifesta no Relatório, levou-me a procurar conhecer o seu grau de parentesco com a grande poetisa que foi Sofia de Mello Breyner Andreson, o que ainda não consegui.
    As manobras de Tancos tiveram importância para as Transmissões pois as experiências que se fizeram, tornaram clara a necessidade de introduzir a telegrafia elétrica no Exército que estava interrompida desde a extinção do Corpo Telegráfico dois anos antes, como dissemos.
    As mais marcantes consequências do sucesso destas experiências nas manobras de 1886 foram ter contribuído, para que:
    • Anos mais tarde, ter sido reintroduzida a telegrafia elétrica no Exército, o que viria a acontecer primeiro nas transmissões Permanentes ou de Guarnição, em 1873, com a criação da primeira rede telegráfica elétrica do Exército, na cidade de Lisboa e depois, nas transmissões de Campanha, em 1884, com a criação da Companhia de Telegrafistas, no âmbito da reforma fontista do Exército
    • A figura do então tenente de Infantaria Bon de Sousa ter saído prestigiada com o sucesso das experiências, o que muito contribuiu para a sua nomeação, em 1880, por Fontes Pereira de Melo para Diretor do Serviço Telegráfico de Guarnição e Pombais Militares do Continente, contra as pressões da Engenharia . O acerto desta nomeação parece incontestável pois Bon de Sousa manteve-se no cargo durante vinte anos, visto que só em 1900 foi substuído por um oficial de Engenharia.

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