O Cancioneiro do BTm4, é, sem dúvida, um testemunho valioso do espírito que envolveu o Batalhão de Transmissões 4 (BTm4) durante a sua missão ao serviço da ONUMOZ (Operação das Nações Unidas em Moçambique) e encapsula de certa forma o legado cultural e emocional do Batalhão.
Mais do que uma simples coleção de canções, este cancioneiro é um relicário de emoções e vivências dos militares, com o confronto com desafios diários, a saudade da pátria e a força da camaradagem que floresceu entre eles.
A música tornou-se, assim, uma forma de escape, de reforço da união e da evocação dos laços com a terra natal.
Entre versos de saudade e celebrações de camaradagem, o cancioneiro eterniza a resiliência e a esperança que sustentava cada militar.
É um símbolo da união, da resistência e da camaradagem que se forjaram no meio de um período de alguma adversidade e, ao mesmo tempo, de profunda transformação.
Um dos temas recorrentes no cancioneiro é a saudade. Para muitos, essa foi a primeira experiência numa missão tão distante, e as canções foram uma forma de se reconectarem com as memórias de casa, das famílias e dos amigos.
Essas músicas ajudavam os soldados a sentirem-se mais próximos das suas raízes, criando um elo emocional que os fortalecia nas horas de solidão.
As canções de motivação também ocupavam um espaço importante no cancioneiro do BTm4, com letras que falavam sobre coragem, dever e sacrifício. Essas músicas ajudavam os militares a manterem-se firmes no cumprimento da sua missão. Em momentos de dificuldades ou cansaço extremo, o canto coletivo reforçava o ânimo da unidade, lembrando a importância da sua presença em Moçambique e o impacto positivo que estavam proporcionando à paz e à estabilidade do país.
O Legado do Cancioneiro do BTm4
Hoje, o Cancioneiro do BTm4 permanece como um importante documento, carregado de significado que encapsula a experiência daqueles que participaram na ONUMOZ, oferecendo um testemunho das emoções vividas por cada integrante da unidade.
Para os antigos militares do BTm4 e para aqueles que hoje relembram a história da missão, essas músicas são uma ponte para o passado, uma forma de reviver as experiências e a herança de uma missão.
O cancioneiro representa, nas suas letras e melodias, a cultura do Batalhão e o espírito humano que pretende ultrapassar fronteiras e distâncias. Ele é um símbolo do poder da música como linguagem universal, capaz de unir pessoas e preservar histórias que inspirarão gerações futuras.
Do conjunto de canções do cancioneiro escolheram-se duas – “Condor, o voo do condor” e “Seis meses se passaram!”, para interpretar o que os autores procuraram transmitir por meio da letra, nos primeiros 6 meses, num contexto operacional, cultural, histórico e emocional da missão do BTm4 na ONUMOZ.
A análise de metáforas, palavras-chave, sentimentos, emoções e datas ajudaram na apreciação das mesmas.
1 – Quem não se lembra do “O VÔO (ENJÔO) DO CONDOR”?
No dia 21 de abril de 1993, 31 militares do denominado 1º escalão, partiam de Lisboa em direção a Nampula. O relato feito pelo Sargento-Mor Tm (R), Carlos Manuel Sousa Narra, descreve o relato da viagem no seu artigo “Projeção do Destacamento Avançado do BTm 4 para a Operação ONUMOZ” disponível aqui.
A canção “Condor, o vôo (enjôo) do condor” do cancioneiro do BTm4 transmite um retrato poético e humorado da experiência dos militares do destacamento avançado a caminho do teatro de operações, capturando o espírito de camaradagem e resiliência no meio das adversidades enfrentadas ao longo das suas viagens.
Por via aérea entre Portugal – Nigéria – Moçambique e por via marítima entre Lisboa e Maputo.
No meio de desafios logísticos e situações desconfortáveis, a letra transmite as emoções, o cansaço e a expectativa de quem embarca numa missão longa e cheia de percalços, mas também revela a capacidade de resiliência e descontração com um toque carregado de ironia.
Cada estrofe pinta um quadro específico da viagem, com detalhes vívidos que tornam a letra uma espécie de diário de bordo.
VÔO (ENJÔO) DO CONDOR
Esse pássaro louco chamado YLLIUCHINE
Carregado de homens com destino ao capim
Bufava, rugia e eles apertadinhos
Bufava, rugia e eles apertadinhos
E nesse navio vulgo carcaça flutuante
MANOLIS LIMASSOL um carregueiro expectante
Transporta material e mais alguns rapazes
De whisky eram adeptos vorazes
CONDOR, O VÔO DO CONDOR,
CONDOR, O VÔO DO CONDOR.
LEVANTA ATERRA, NÃO LEVANTA,
LEVANTA ATERRA, NÃO LEVANTA.
NO MAR OS LOUCOS NUM ANDOR,
NO MAR OS LOUCOS NUM ANDOR.
Em Lagos secam oito horas, pouco dormiram
Calor era mato e espingardas lhes apontaram
E agora que fazer desta embrulhada
De esperar estou farto e não dormi nada!
No barco as coisas corriam ondulantes
Mais calmas mas não menos irritantes
O tédio combatia-se à garrafa
Subir escadas era uma grande estafa…
Havia um Santo que zelava por nós todos, coitado
Por Tarek Aziz foi logo batizado
E quando aparecia o Árabe dos Dólares
Os problemas iam logo pelos ares!
No Manolis o pavilhão era da Turquia
O Capitão era Grego e a todos nos sorria
Os Filipinos a sua tripulação
Nas nossas cabeças uma confusão…
Voando enfim para Nampula, já com rumo
Muitas voltas demos à zona. nem sinais de fumo
Onde está a pista? Diz o piloto
Não vê que está ali. seu maroto!
Os marinheiros já quase no cais de Maputo
Mal se contendo para saltar a pés juntos
Dezanove dias sem ver um broto
Eles só queriam lavar o pescoço
1ª Estrofe: A partida e as dificuldades
A primeira estrofe começa com uma referência ao “pássaro louco chamado Ylliuchine”, que faz alusão ao avião de transporte militar, o Ilyushin- 76, de origem russa desenvolvido em meados da década de 60, conhecido pela sua resistência e robustez.
Descreve-se como “carregado de homens com destino ao capim”, que indica que estão sendo transportados para uma zona remota e inóspita.
A imagem do avião “bufando e rugindo” enquanto os militares “apertadinhos” esperam ansiosamente o fim do voo mostra o desconforto físico e a impaciência que caracterizaram a viagem.
De seguida, aparece o cargueiro “Manolis” registado em Limassol, Chipre, que é descrito como uma “carcaça flutuante” e um “carregueiro expectante”.
A descrição revela que, embora fosse um navio em condições questionáveis, ele era um refúgio onde os soldados passavam o tempo e até recorriam a um pouco de uísque como forma de suportar o tédio e a monotonia da longa viagem.
Refrão: O Voo do Condor
O refrão, com o verso “Condor, o vôo do condor, levanta, aterra, não levanta”, enfatiza o ritmo imprevisível e exaustivo da viagem, onde as incertezas e a falta de controlo marcaram a experiência.
Essa repetição de “levanta, aterra” simboliza o vai e vem de emoções e expectativas, mostrando como a viagem foi um exercício de paciência e resistência para todos.
2ª Estrofe: A escala na Nigéria
Na segunda estrofe, a narrativa segue para Lagos na Nigéria, onde a tropa enfrenta mais uma espera desgastante.
A canção menciona o calor intenso e a falta de descanso, além da tensão adicional de ter armas apontadas, criando um cenário de desconforto e insegurança.
A frustração aumenta com o tempo de escala, numa “embrulhada” que só aumenta o cansaço físico e mental.
No barco, mesmo que o ritmo seja menos intenso, o tédio e a irritação continuam presentes, sendo combatidos, mais uma vez, com o auxílio da bebida e atividades que ajudam a suportar o clima.
3ª Estrofe: Personagens
A terceira estrofe introduz personagens curiosos, como “o Santo” e “Tarek Aziz”, apelido dado pelos soldados a alguém que representava uma figura protetora ou que possuía uma influência significativa.
Esse “Árabe dos Dólares” simboliza uma ajuda inesperada que, ao surgir, alivia as dificuldades e resolve temporariamente os problemas dos viajantes. Essa figura parece ser uma espécie de anjo da guarda da tripulação, aliviando as tensões e os problemas burocráticos.
A tripulação do navio é descrita de forma quase caricata, com um capitão grego e marinheiros filipinos, numa mistura cultural que causa confusão e curiosidade na cabeça dos militares.
A composição multicultural da tripulação e o pavilhão turco do navio adicionam um elemento exótico e intrigante à viagem, sugerindo que, no meio da monotonia, essas peculiaridades também contribuíam para a diversão e descontração do grupo.
O Fim da Jornada: A chegada a Moçambique
Finalmente, após várias voltas sem direção, o avião pousa em Nampula, e a canção descreve a busca pelo aeroporto, com o piloto perguntando “onde está a pista?”, numa situação quase cómica que reflete o alívio misturado à incerteza das condições do destino.
No navio, a espera parece eterna, mas ao avistar o cais de Maputo, a euforia toma conta da tripulação, que mal pode esperar para desembarcar e voltar a sentirem-se “limpos” após 19 dias de viagem sem um “banho adequado”.
2 – E na primeira rotação do Batalhão surge o “Seis meses se passaram!”.
Em 28 de setembro de 1993, na Matola, Moçambique, o então Major Joaquim Stone e o 1º Sargento José Morgado, uniram esforços para compor uma canção que marcaria o espírito de todos e ficaria na memória daqueles que serviram no BTm4, captando os sentimentos e alma da tropa, que enfrenta os desafios diários.
Ela capta o espírito resiliente e a camaradagem construída durante os seis meses de missão na Matola.
Logo no primeiro verso, expressam a passagem do tempo e o impacto das experiências vividas, que foram ao mesmo tempo intensas e fugazes:
“Seis meses se passaram e parece que não foi nada.
Muitas coisas aconteceram a esta tropa danada!”
A letra expressa a saudade e a dureza da experiência, reconhecendo a humanidade dos militares:
“Alguns vão embora, talvez com saudade.
Um homem também chora, é a mais pura realidade.”
Essa sinceridade em admitir a saudade e as lágrimas rompe a ideia tradicional de que os soldados são invulneráveis, mostrando que, para eles, a saudade e a dor da distância são sentimentos reais e inevitáveis.
SEIS MESES
Letra e Música: Maj Stone e 1º Sarg José Morgado
Seis meses se passaram
e parece que não foi nada.
Muitas coisas aconteceram
a esta tropa danada!
Alguns vão embora, talvez com saudade.
Um homem também chora,
é a mais pura realidade.
No princípio era um deserto
que os nossos olhos espantou
e mudar isto decerto,
ninguém acreditou!
Mas pouco a pouco,
um milagre aconteceu:
com meia dúzia de loucos,
um jardim aqui nasceu!
Agora olhem para isto!
não notam nada rapazes?
Aquele semblante triste
já lá vai, e somos ases.
P’rá aqueles que vierem:
cuidado não se distraiam!
É preciso não esquecerem
os que isto começaram.
(Matola, 28SET93)
A canção descreve, nos seus versos, o cenário inicial da missão: um “deserto” desolador que surpreendeu e testou a determinação dos militares.
Porém, aos poucos, com trabalho árduo e persistência aquele ambiente árido, foi-se transformando num espaço de vida:
“No princípio era um deserto que o nosso olho espantou
e mudar isto decerto, ninguém acreditou!
Mas pouco a pouco, um milagre aconteceu:
com meia dúzia de loucos um jardim aqui nasceu!”
Esta passagem mostra o valor da perseverança.
O que parecia impossível – fazer florescer um “jardim” no meio de um ambiente hostil – tornou-se realidade pela vontade de uma “meia dúzia de loucos” que se recusaram desistir.
Esse jardim não é apenas literal, é uma metáfora para a união, o trabalho conjunto e o espírito de superação que floresceram entre os militares na Matola.
A canção, no entanto, não é apenas uma celebração da conquista, traz também um alerta para aqueles que viriam na 1ª rotação do batalhão, em finais de novembro de 1993, uma espécie de conselho, um lembrete para valorizar os sacrifícios dos que enfrentaram o desafio antes deles:
“Agora olhem para isto! não notam nada rapazes?
Aquele semblante triste já lá vai, e somos ases.
Prá aqueles que vierem: cuidado não se distraiam!
É preciso não esquecerem os que isto começaram.”
Esse alerta final reforça a importância de preservar a memória e o esforço de todos que, com suor e sacrifício, transformaram aquele espaço na Matola.
É um lembrete de que cada conquista traz a marca de quem deu o primeiro passo, e que esse legado deve ser respeitado e honrado.
Conclusão
“Condor, o vôo do condor” não é apenas uma canção sobre uma viagem, é uma crónica musical das dificuldades, dos desafios e do humor que emergem quando se enfrentam situações de desconforto, com um olhar humano e irreverente e uma combinação de ironia, nostalgia e camaradagem.
“Seis Meses se Passaram” é mais do que uma canção, é um testemunho de coragem, superação e amizade.
A música imortaliza o espírito da missão e dos soldados, mantendo viva a lembrança daqueles que construíram, no meio do “deserto, um jardim” — cheio de histórias, de desafios vencidos e de uma saudade compartilhada que transcende no tempo.
Prestamos assim uma sincera homenagem ao então Major Stone e ao 1º Sargento José Morgado, que uniram esforços para captar, em palavras e melodias, as emoções, os desafios e a camaradagem de todos os que serviram no BTm4.
Ambos os autores já partiram, mas a canção que compuseram é mais do que um símbolo do BTm4 — é um testemunho vivo de resiliência e união, um tributo ao valor humano e à amizade forjada no calor da adversidade.